Dizem que o governo é corrupto porque a população é corrupta. Talvez seja o lugar-comum mais recorrente quando alguém analisa as agruras do Brasil.
Durante a greve dos caminhoneiros, choveram relatos de gente furando fila em postos de combustível, pedindo mais gasolina do que o limite previsto, aumentando preços sem qualquer cerimônia e comprando montanhas de arroz para estocar em casa – tudo sem o menor senso de coletividade.
Como de costume, os que se julgam honestos saíram a dizer que, enquanto essas pilantragens forem tão frequentes, de nada adiantará protestar contra os corruptos. Porque a corrupção dos políticos é um prolongamento da nossa. Porque os governantes são um espelho da sociedade. Porque quem trapaceia no súper também trapacearia no Congresso etc, etc.
Em primeiro lugar, essa é uma beleza de discurso para a classe política – afinal, ninguém mandou essa ralé ser tão vigarista, agora que aguente a nossa roubalheira. Muito cômodo. Em segundo lugar, existe uma teoria antiga, vem lá de Platão e Aristóteles, que já foi comprovada por uma série de estudos mundo afora: é a tese do mimetismo.
Diz o seguinte: quando o ocupante de um cargo superior comporta-se de maneira imoral, seus subordinados sentem-se autorizados a fazer o mesmo. No Brasil, um país com apenas 33 anos de democracia, não seria exagero dizer que os ocupantes de cargos superiores comportam-se de maneira imoral há 518 anos.
Você sabe, não eram lá muito construtivas as pretensões dos portugueses quando chegaram aqui. Extraíam as riquezas e mandavam o lucro para fora, não queriam construir uma pátria, não investiam um tostão na Terra de Santa Cruz, violentavam as índias e depois se mandavam – assim nasciam os primeiros miscigenados. No livro The Cultural Complex, lançado nos Estados Unidos, a psicóloga Denise Gimenez Ramos conta que esses filhos bastardos eram rejeitados por suas tribos, que não os reconheciam como índios.
Abandonados e sem chance de alcançar sucesso na vida – jamais seriam líderes de uma aldeia, por exemplo –, esses primeiros brasileiros cresceram com um violento complexo de inferioridade. E a concepção da figura do pai, para eles, foi a pior possível: alguém que só aparece na hora de extrair, de retirar, de obter vantagem, nunca para construir ou cuidar. Mesma coisa o governo.
É o Estado tirânico que abre caminho para as trapaças cotidianas. E não as trapaças cotidianas que fazem um Estado tornar-se tirânico
Fomos nos acostumando a séculos de regimes arbitrários, em que essa cultura extrativista, de retirar em vez de construir, de obter vantagem em vez de cuidar, foi se perpetuando e aprofundando ainda mais o tal complexo de inferioridade. Vivemos dizendo que o Brasil é uma porcaria – o brasileiro respeita as leis quando está no Exterior, mas desrespeita aqui, porque acha o seu país uma porcaria. E assim ele confirma a tese do mimetismo.
Porque um brasileiro, quando está no Primeiro Mundo, entende que lá, ao contrário daqui, as instituições – o Legislativo, o Judiciário, o Executivo – realmente funcionam. Lá, ele paga imposto e recebe seu quinhão de volta. Aqui, não: aqui, 40% de tudo o que o brasileiro produz vai para o governo, que só retira, retira, retira, e não devolve em saneamento, em segurança, em educação, em saúde, em nada.
– Eu vou é sonegar – pensa o brasileiro.
Ou:
– Eu vou é subir o preço dessa gasolina.
Ele está errado, não há dúvida, mas age assim porque o Estado tirânico o incentiva. Você, por exemplo, se seu filho doente estivesse há dois anos aguardando uma cirurgia no SUS e um servidor lhe oferecesse um furo na fila em troca de dinheiro, você não pensaria em pagar?
Talvez sim, porque, repito, é o Estado tirânico que abre caminho para as trapaças cotidianas. E não as trapaças cotidianas que fazem um Estado tornar-se tirânico. Se o Estado funciona, se as instituições funcionam, as brechas para qualquer corrupção progredir são menores. O lado bom é que estamos melhorando: algumas instituições avançam aos poucos, os corruptos de verdade já vão em cana no Brasil.
Porque a culpa é deles, sempre foi. Nunca foi minha nem sua.