Agora foi Anitta. Apareceu de tranças gravando o novo clipe. Disseram que ela "brincou de ser negra", que é muito fácil uma moça branca adotar um "estilo afro" sem conhecer os preconceitos que uma negra, quando assume o mesmo estilo, precisa enfrentar.
Essa conduta ganhou o nome de apropriação cultural – assunto que suscita palpitantes debates na imprensa e nas redes sociais desde fevereiro, quando uma jovem branca de Curitiba, de 19 anos, relatou no Facebook que fora repreendida na rua por usar turbante.
"Comecei a reparar que tinha mulheres negras, lindas aliás, me olhando torto, tipo 'olha lá a branquinha se apropriando da nossa cultura'. Veio uma falar comigo, dizer que eu não deveria usar isso, então tirei o turbante e falei: 'Tá vendo essa careca? Isso se chama câncer, então eu uso o que eu quero!'", contou Thauane Cordeiro em um post com 140 mil interações no Facebook.
Militantes da causa negra se compadeceram com a doença dela, mas seguiram condenando a apropriação cultural – uma forma, segundo eles, de usufruir de elementos de uma cultura sem sentir na pele, ou sem pelo menos refletir sobre o que significa, de fato, vivenciar essa cultura. Além de turbantes e tranças, entram nesse espólio dreadlocks, torços e cabelo black power.
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Eu aqui, bem, até tenho minha opinião, mas resolvi botá-la à prova ouvindo sobre o tema duas pessoas que admiro. A primeira é a professora (negra) Fernanda Oliveira, que leciona História das Américas na UniRitter e coordena aqui no Estado o Grupo de Trabalho Emancipações e Pós-Abolição, da Associação Nacional de História.
– É inegável que há diferença entre uma mulher branca de turbante e uma mulher negra de turbante – avalia Fernanda. – Em geral, a branca será vista como bela e descolada, uma moça que está na moda, enquanto a negra será enquadrada automaticamente em estereótipos grosseiros, como batuqueira. Um homem negro de dreadlocks é temido na rua, pode ser tachado de sujo, até de criminoso. Ocorre assim uma expropriação de direitos: eu, que sou negro, não tenho direito de manifestar meu corpo, minha cultura, porque corro risco de despertar situações negativas. Já uma pessoa branca pode usufruir da minha cultura sem sequer refletir sobre nossos obstáculos para vivenciá-la.
Pergunto à professora se Amy Winehouse, Rolling Stones e Elvis Presley cometeram apropriação cultural ao construírem carreiras em cima da música negra americana, e ela diz que "não há problema algum no sucesso deles; o problema são artistas negros que criaram e ainda criam essa sonoridade morrerem pobres ou serem considerados feios".
O filósofo Roberto Romano, professor (branco) de Ética Política na Unicamp – segunda mente pensante que ouvi para esta coluna –, pondera que "uma coisa são as submissões e o escravismo de povos africanos, que ocorreram sobretudo depois do Renascimento, outra coisa é o princípio humano da imitação e do empréstimo de outras culturas".
– É um fato etnológico incontestável: todo coletivo, ao mesmo tempo em que cria, também empresta técnicas de instrumento, de corpo, de vestimenta e de adorno a outras culturas, que recriam em cima delas. Não existe técnica, na história da humanidade, que não pressuponha o empréstimo e a invenção – afirma Romano. – Em vez de assumir o monopólio de determinados signos, creio que seria melhor obter novos aliados na luta contra a desigualdade social e racial. Acho muito ruim esse isolacionismo, do ponto de vista estratégico, ainda mais em um mundo que parece caminhar para um novo nazismo. Essa postura pode gerar ódio, segregação, pode inclusive contribuir para uma cultura ser considerada inferior justamente por não encontrar eco na vida social.
Em um momento como este, resume o professor, qualquer atitude que sugira a separação, e não a expansão de uma cultura, talvez seja um suicídio. Anitta e seu estilo afro por enquanto seguem vivos.