Com um sorriso largo e uma bandeja estreita, dona Marli vem animada da cozinha.
- Olha o cafezinho! - anuncia ela, antes de pousar na toalha de plástico um bule e duas xícaras inacreditáveis.
Eu e o fotógrafo Lauro Alves, após almoçarmos galinha com massa pelo quarto dia seguido naquela bodega de beira de estrada, olhamos abobados para a louça. O bule colorido tem forma de gato sorridente e usa gravata borboleta, enquanto as xicrinhas exibem corações policromáticos no limite do mau gosto. Mas algo ali nos faz bem.
- Bonito, né? - dona Marli se envaidece, depois adota um tom grave: - Paguei muito caro. É do Romero Britto, artista famoso.
Faço cara de surpreso, o Lauro responde "ó!", e logo lembro de um amigo - intelectual de barba e suspensório, leitor de David Foster Wallace e fã da segunda fase dos Kinks - que nos anos 90 comprou um pôster emoldurado do Romero Britto, na época um serígrafo ainda desconhecido. O quadro era uma versão multicolorida de Abaporu, pintura icônica de Tarsila do Amaral. Eu gostava.
Só que o Romero Britto ficou famoso, a crítica passou a abominá-lo, a comunidade artística também, sua obra virou até bule para a dona Marli, então o rapagão arrancou o quadro da sala e o escondeu na despensa escura. De frente para a parede. E por isso Romero Britto é o meu herói.
Como também é meu herói Michel Teló. E aproveito para revelar que acho Ana Maria Braga um gênio.
E, se você não acha, talvez vá achar daqui a 20 anos. A história mostra isso. Porque em todas as épocas, sem nenhuma exceção, houve sempre a avaliação arrogante de que a cultura consumida pelas massas era de qualidade duvidosa. Mas bastava passar uma década ou duas para a "classe média culta" se curvar para os artistas que um dia havia desdenhado. De Teixeirinha a Mamonas Assassinas, passando por Odair José e Claudinho & Buchecha, na música há dezenas de exemplos disso.
Antes de voltar para o Romero Britto, vou citar um sociólogo.
Bourdieu dizia que a cultura, antes de mais nada, é um elemento de distinção social. Quer dizer, a gente se utiliza dela para se sentir parte de um grupo destacado, importante, bacanão. Quando a arte se massifica e é consumida pelo grande público, acaba perdendo esse valor - aí é melhor escondê-la na despensa.
- Que lindo bule, dona Marli! - digo eu, já sorvendo o café fumegante.
- Gosto de arte, meu filho - ela responde, e no rádio eu escuto "ei, psiu, beijo me liga..."
Que grande música.
*O colunista Paulo Sant'Ana, titular desta seção, encontra-se em tratamento de saúde.