Embora a Argentina só fosse estrear pela Copa do Mundo dois dias depois, milhares de torcedores (e principalmente torcedoras) tomaram Buenos Aires na madrugada de quinta-feira em vigília. Apenas um dos lados adotou o alviceleste nacional. A outra metade vestiu o verde em lenços, flâmulas e cartazes que se tornaram símbolos poderosos. A capa do site do jornal Clarín amanheceu sem uma mísera menção a Messi e companhia. Todo ele era dedicado à acirrada disputa na Câmara de Deputados sobre o projeto de legalização do aborto.
Em questões tão importantes como o aborto, antes de escolhermos o time do contra ou a favor, é preciso eleger parlamentares que ao menos topem calçar as chuteiras.
A saber. Para emoção de milhares de "pibas" do lado de fora do Congresso e decepção de outras tantas, os deputados argentinos aprovaram a legalização da prática até a 14ª semana de gestação. O placar foi apertado: 129 votos a favor, 125 contra e uma abstenção. O projeto ainda precisa passar pelo Senado, onde é esperada maior resistência.
Desde quarta-feira, quando as notícias sobre a votação na Argentina começaram a invadir os sites brasileiros como as suas frentes frias, me bateu uma tremenda inveja dos nossos vizinhos. Não interessa aqui se sou favorável ou contrário ao que decidiram os argentinos, não é esse o ponto. O que me causou inveja foi esse exemplo singelo e prosaico de democracia. Um parlamento discutindo a pertinência de uma lei. Nada mais do que legisladores fazendo o seu trabalho de legislar.
Uma perguntinha – em especial aos candidatos a deputados e senadores que logo mais voltarão a bater em nossas portas em busca de votos: há quanto tempo o Congresso brasileiro não debate uma questão de relevância nacional com tamanha franqueza? Qualquer coisa. Por aqui, o toma lá dá cá envolvendo parlamentares e governo se tornou tamanha platitude que sequer esperamos que haja algum debate sobre os projetos em si. As táticas para a vitória do governo ou dos seus opositores importam mais do que as ideias que se enfrentam. Quiçá elas nem entram em campo.
Vejamos, por exemplo, os principais carros-chefes do governo Michel Temer. Reforma trabalhista vai passar? Então entra em votação. Reforma da Previdência não tem votos o suficiente? Melhor nem tentar. Pouco importa o que os deputados pensam sobre a necessidade de reformular as rotinas de trabalho ou sobre as aposentadorias, e muito menos o que desejam os eleitores brasileiros que eles representam. É como se o Brasil só topasse enfrentar no máximo, sei lá, o Egito. E se o Salah inventasse de ir para o aquecimento, Tite retirasse correndo o time de campo por precaução. Vai que tome gol.
Enquanto por aqui o presidente só quer ver jogo quando já sabe o placar, na Argentina, entre os mais significativos opositores do projeto sobre o aborto estão a vice-presidente Gabriela Marchetti e o presidente Mauricio Macri. Mas, como manda o figurino em uma república, Macri se comprometeu a respeitar a decisão dos parlamentares e não vetar a nova lei caso ela também passe pelo Senado. Afinal de contas, trata-se da legítima decisão dos representantes do povo argentino.
Certa vez, entrevistando o ex-ministro Nelson Jobim, ouvi dele uma frase marcante: "Não ter vontade política para votar algo já é uma decisão política". No Brasil, nos acostumamos a um Congresso que tem medo de política, e por isso vai aos poucos deixando de praticá-la e achando isso natural. Nossa obrigação é vaiar essa naturalidade. Em questões tão importantes como o aborto, antes de escolhermos o time do contra ou a favor, é preciso eleger parlamentares que ao menos topem calçar as chuteiras. E parabéns, Argentina, por essa goleada.