Nem sempre o gaúcho foi chamado assim. Os rio-grandenses já foram os guascas. Essa denominação vem do império e adentrou no século 20. Para quem não é do campo, melhor ir traduzindo: guasca é uma tira de couro cru, ou corda do mesmo material.
No começo a denominação era depreciativa: utilizada pelo citadino para o pessoal do campo; ao mesmo tempo pelos nortistas em relação a nós. Mas de fato, como ninguém se importava, tornou-se neutra e genérica para os habitantes deste canto do mundo. Hoje denota valor viril.
Existe um livro extraordinário, de Simões Lopes Neto, chamado Cancioneiro Guasca, onde ele registra as canções populares que divertiam nossos antepassados. Provavelmente, hoje seria nomeado de Cancioneiro Gaúcho.
Mas o que um pedaço de couro dizia de nós? Um apelido não pega se não acerta um nervo. O couro era o plástico dos séculos passados. Como aqui abundava, o usávamos a esmo. Hoje reservamos o couro mais para agregar nobreza a um produto do que por necessidade. Pensando retroativamente, imaginamos que, sendo um Estado pastoril, teríamos como carro chefe a carne e não seu par, tão ou mais valioso.
No passado, a pele animal servia para tudo: potes, sacos, baús, mil objetos do cotidiano. O couro, especialmente o cru, tem vida curta, se o tempo não o come, os ratos se servem. Por isso não restaram objetos dessa época, apenas sabemos pelas descrições de quem deixou linhas sobre nossos costumes. Um dos detalhes narrados era que amarrávamos a torto e a direito, como marinheiros de terra firme, tínhamos nós para qualquer lida. Ao invés de usar um prego, atávamos com guascas.
Mas isso é da ordem do fático, não explica o alvo que atingiu. Por que não foi tomado como pejorativo? Acontece que o couro cru é um elemento rústico, um produto cultural que, por não ser curtido, parou no meio do processo. Assim nos sentimos, aculturados ma non troppo. Mais jovens que o resto do Brasil, sabíamos que não éramos vaqueanos nos salamaleques da cidade e da corte, e ao mesmo tempo, nos lixávamos para essa frescuras.
Depois, quando gaúcho veio substituir guasca, usou a mesma veia. Somos do campo, rudes, não totalmente domados pela civilização. Haveria em nós algo, como aquela pitada de tempero que dá o sabor ao todo, de selvagem, de xucro. Como contraparte, seríamos mais autênticos, menos corrompidos pela hipocrisia urbana.
Havia um fato a mais, o faroeste do Brasil foi aqui. Cada geração fez uma guerra ou uma revolução. De quebra, éramos a única fronteira de disputa territorial. Fôssemos homens ou Anas Terra, nascíamos com um sabre na mão, e, se não aprendêssemos a usá-lo, não sobreviveríamos. Tente ser refinado com um barulho desses...
Gaúcho ou guasca? Tanto faz, os dois representam nosso ancestral mítico e sua força telúrica.