* Cineasta
Empresário, inventor, publicitário, astrólogo, correspondente comercial, comentarista político, tradutor, crítico literário, escritor, filósofo e poeta maior da língua portuguesa, Fernando Pessoa não cabia em si e transbordava em heterônimos. Pelo punho do desassossegado Álvaro de Campos, talvez o mais importante dos seus amigos inventados ("com uma falta de gente coexistível como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer se não inventar os seus amigos?"), Pessoa escreveu o impressionante texto que editado – aliás como convém em tempos de hj – invadiu nos últimos dias as redes sociais na voz grave de Maria Bethânia.
Dias em que ser brasileiro faz ferver a cara de vergonha, dias de humilhação e desrespeito e que insultam a inteligência de todo um país. Dias como os que provavelmente viveu Pessoa e o povo português em 1890 com a escandalosa imposição do ultimato britânico, que terminou derrubando o governo de Lisboa.
O texto original é bem mais complexo, Campos cita nome e sobrenome de personagens que são alvo do seu repúdio e indignação. Um por um espinafra e, pra não esquecer ninguém, proclama:
"… E se houver outros que faltem, procurem-nos aí para um canto!
Todos! todos! todos!
Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem intelectual!
E todos os chefes de Estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados pra baixo à porta da insuficiência da época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!
Se não querem sair, fiquem e lavem-se!
Falência geral de tudo por causa de todos!
Falência geral de todos por causa de tudo!
Falência dos povos e dos destinos – falência total!"
Segundo meu pai, jornalista e filósofo com 83 anos na cara, as pessoas estão exaustas com os noticiários pesados, a crise política é triste, desalentadora e emburrece.
E o que dizer da polarização que dividiu o país em dois, amigos trocando ofensas, gente inteligente agindo de forma infantiloide, primária e teimosa? Por orgulho? Vergonha? Me escapa qualquer explicação possível.
O Brasil está monotemático, está obtuso, atrasado. Não se discute nada a não ser sua escandalosa vida política.
Também cansada e já sem muita esperança, convoco mais uma vez a necessidade do novo. E para tal empresto a genialidade de um homem múltiplo e o trecho mais bonito de "Ultimatum".
Boa sorte, Brasil!
"Sufoco de ter somente isso à minha volta. Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas!
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo.
O mundo quer a inteligência nova, a sensibilidade nova, o mundo tem sede de que se crie.
O que aí está a apodrecer a vida quando muito é estrume para o futuro. O que aí está não pode durar porque não é nada.
Eu, da raça dos navegadores, afirmo que não pode durar!
Eu, da raça dos descobridores, desprezo o que seja menos do que descobrir um novo mundo.
Proclamo isso bem alto, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstratamente o infinito."
Álvaro de Campos, 1917
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