O mistério em relação a mortes envolvendo autoridades na América Latina flerta com a queda do avião onde estava o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki, relator da Lava-Jato. E fomenta suspeitas! Um dia antes da morte de Teori na queda de um avião em Paraty, completou-se o segundo ano da morte do procurador argentino Alberto Nisman, que investigava supostas promiscuidades nas relações da presidente Cristina Kirchner com o governo do Irã e o suposto acobertamento de atuação iraniana em atentados terroristas que abalaram a Argentina na primeira metade dos anos 1990, com 114 mortes.
E como está o já arrastado "caso Nisman" na Argentina?
Dois anos após a morte do procurador, não se sabe nem a hora em que morreu.
A dúvida persiste: ele foi assassinado por denunciar a ex-presidente Cristina Kirchner de encobrir o caso Amia (Associação Mutual Israelita Argentina) ou se suicidou? Eduardo Taiano, o novo procurador do caso, roça a tese do homicídio.
– A investigação foi extremamente malfeita, e creio que isso foi intencional. Por isso, denunciei à procuradora Fein (primeira encarregada do caso) e ao ex-secretário de segurança Berni (um dos primeiros a chegar à casa de Nisman na noite de 18 de fevereiro de 2015) – explicou ao jornal espanhol El País.
Todas as investigações atuais têm feito crescer a teoria do assassinato.
Três possibilidades costumavam ser aventadas: o suicídio, o homicídio ou a incitação ao suicídio.
Aqui, abaixo, texto feito por este colunista na época, cujo resumo seria o de que muitas vezes o contexto de um crime pode ser até mesmo mais gritante que os próprios indícios e provas. Depois, siga lendo sobre a situação atual...
Há fatos que dispensam teses. Há obviedades que imploram por reflexões razoáveis e rejeitam complexidades forjadas para justificar determinado fim. A indigência intelectual e o contorcionismo argumentativo, típicos desta nossa "era da intransigência", atingiram o auge nos dias seguintes ao 18 de janeiro em que o procurador argentino Alberto Nisman foi encontrado morto no seu apartamento, com uma bala enfiada na têmpora direita. Nisman investigava o barbarismo de um raro atentado terrorista em terras sul-americanas, o da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 85 mortos em 1994, somando-se aos 29 do ataque à embaixada de Israel, dois anos antes. Mais: horas depois da sua morte, Nisman iria depor sobre o suposto acobertamento da presidente Cristina Kirchner à igualmente suposta participação iraniana no episódio da Amia.
Talvez a frase mais inteligente de todas, nesta esquina da História em que parecemos personagens de um grande enredo nonsense, seja a curta sentença do jornalista argentino Jorge Lanata:
– Por favor, crianças...
Bem traduzido, ele quis dizer "não sejamos ingênuos". Ou, quem sabe, "não sejamos espertos demais".
O primeiro impulso da presidente e do seu séquito foi de sustentar a tese de suicídio, ainda que tudo estivesse por ser apurado e que a arma calibre 22 fumegasse ao lado do corpo quente. Na medida em que evidências, eloquentes como provas, tornavam inquestionável o homicídio ou o suicídio induzido, Cristina e os seus mudavam o discurso. Passaram a elaborar teorias conspiratórias referentes a uma trama para prejudicá-la. Tudo tão apressadamente que, no afã de defender a tese favorável, esqueceram-se de dar condolências à família de Nisman.
Mas, crianças... isso não se sustenta.
Na quarta-feira, 400 mil pessoas ganharam as ruas de Buenos Aires. Também em Córdoba, Santa Fé, Rosario. Foi a "marcha do silêncio" promovida por integrantes do Ministério Público, ex-colegas de Nisman. A documentação juntada pelo procurador morto foi corroborada pelo MP. A denúncia formal chegou ao Judiciário.
O fato é que Nisman pode ser considerado a 115ª vítima do terror, depois dos que sucumbiram sob os escombros da embaixada e da Amia. A comunidade israelita argentina organizou o enterro do procurador, também ele judeu, sem levar em conta a hipótese lunática do suicídio. Logo no exato instante em que, aos 51 anos, o homem, desprovido de traços suicidas, vive o auge profissional? Bem quando está às vésperas da glória em rede nacional? Nos dois atentados, havia as conexões local e internacional. Qual delas matou ou conduziu Nisman à morte? Pode-se apostar um alfajor Havana que é por aí que se chega a uma conclusão. Poderia ser alguém do serviço de inteligência argentino? Não dá para se descartar essa possibilidade, até porque se trata de um sistema de longa tradição mafiosa, herdeiro do fascismo de uma ditadura cruel como poucas, que deixou 30 mil mortos e desaparecidos entre as décadas de 1970 e 1980.
Se você é uma pessoa que mantém o saudabilíssimo hábito de trocar ideias, se não profere palavras como "petralha" ou "coxinha" para desqualificar o interlocutor, saiba que essa prática, de trocar ideias, entrou em desuso. Ela pressupõe a disposição de dar e receber argumentos a ponto de eventualmente até acatá-los. Intercâmbios são assim na sua essência. Mas, mesmo se você for um argentino kirchnerista com certidão lavrada em Río Gallegos, pense neste contexto: 1) Nisman foi morto – ou induzido ao suicídio – às vésperas do depoimento que daria ao Congresso sobre o Caso Amia, no qual acusaria Cristina de acobertar iranianos (cujo governo mantém relação estreita com autoridades sul-americanas próximas à Argentina); 2) Nisman não deixou carta de despedida; 3) Nisman deixou lista para compras no supermercado; 4) não havia pólvora nas mãos de Nisman; 5) a porta de serviço do apartamento de Nisman não estava trancada; 6) Nisman recebera ameaças de morte; 7) Nisman estava centrado no trabalho sobre a Amia.
Suicídio numa hora dessas? Ah, tá. Crianças, crianças...
São evidências evidentes demais (a cacofonia é proposital, caro leitor).
Agora que você já percebeu o absurdo desse teatro, sigamos adiante.
Até aqui, quem acompanha o noticiário e pensa livremente, sem contaminações, há de convir: o suicídio simples é hipótese insustentável. Mas por que são delirantes as teorias conspiratórias contra Cristina?
De novo, por itens: 1) a conspiração, por si só, já seria uma possibilidade remotíssima; 2) os responsáveis pela morte teriam forjado um suicídio caso fosse para incriminá-la?; 3) Cristina é um "pato manco" – está em fim de mandato, não pode se reeleger pela segunda vez consecutiva e não tem um aliado suficientemente competitivo para as eleições de outubro; 4) não falta gente de peso disposta a fazer o óbvio: matar Nisman para silenciá-lo. Pode ser alguém da Argentina ou de fora, ligado ou não ao governo, mas certamente não para prejudicar a presidente jogando um cadáver no seu colo; 5) dizem que Nisman mantinha contatos com a inteligência americana (a CIA). Ora, é evidente que sim! E o que isso muda? Tanto os EUA quanto Israel tinham e têm interesse direto no desfecho das investigações sobre esses dois casos de terrorismo internacional contra alvos judaicos. 6) Você acha que quem matou 114 teria muitos pruridos para matar o 115º?
Pronto. Removam-se as maluquices destinadas unicamente a defender um governo, uma tese ou uma força política. Sejamos razoáveis e não tornemos alguns casos mais complexos do que realmente são. O episódio é sério demais para nos darmos o luxo de engessamentos mentais inimigos da honestidade intelectual.
Repetindo Lanata, "por favor, crianças…"
Ameaças ao novo procurador
Outro dos inúmeros mistérios desse caso é que as ligações de Bullrich e muitas outras foram apagadas do telefone de Nisman. Quem o fez?
– Ligações e registros desapareceram do computador de Nisman. É evidente que sua morte está relacionada com as investigações que estava realizando – diz Taiano, que conta estar sendo alvo de ameaças de morte.
A ameaça, recebida em mensagem no celular, diz: "Pare de mexer com esse russo filho de mil putas! Vamos fazer merda com você e Federico (filho de Taiano). Têm os dias contados...".
Bah!
A palavra "russo", conforme pessoas próximas ao procurador morto, faz referência ao modo como chamavam Nisman, de origem judaica, em algumas das várias ameaças que recebeu.
Cinco grandes mistérios sobre o caso Nisman:
1) Das dezenas de dúvidas, a principal é ter morrido na véspera de um dos dias mais importantes de sua carreira. Na segunda-feira, 19 de janeiro, Nisman apresentaria denúncia formal contra Cristina Kirchner e membros de seu governo por supostamente encobrir acusados pelo atentado à Amia, em 1994.
2) Nisman não aparentava indícios de depressão, segundo familiares e amigos. Não deixou bilhete, delegava ordens, trabalhava incessantemente, relatou até que queria aumentar a própria segurança. Ainda não se sabe por que ele teria se matado com uma calibre .22, em vez da .38 que tinha - muito mais letal.
3) Conforme testemunha no local, durante a primeira inspeção ao apartamento do procurador, foram manipulados documentos e um dos celulares de Nisman. Até mesmo a cafeteira de Nisman foi usada. Além disso, o secretário nacional de Segurança, Sergio Berni, chegou antes de todas as autoridades.
4) Outro DNA foi encontrado no apartamento. Digitais, pegadas e indícios de movimentos atípicos no local também. A porta de serviço era fácil de abrir sem deixar rastros. Além disso, a balística poderia tanto indicar suicídio como assassinato - sem pólvora em suas mãos, ele poderia ter sido executado.
5) Dias após o governo garantir que Nisman teria cometido suicídio espontâneo, a presidente Cristina Kirchner escreveu uma longa carta elaborando sobre o que considerou um "complô" que inundou o promotor de pistas falsas e o matou para silenciá-lo. A Casa Rosada se manteve com a versão de conspiração.