Não é possível simplificar a situação venezuelana fazendo comparações vazias com o impeachment da presidente Dilma Rousseff no Brasil, por exemplo. Tanto é assim, que o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o esquerdista Luis Almagro (ex-chanceler do insuspeito presidente José Pepe Mujica), foi contra o processo brasileiro por uma série de motivos que ele elencou na ocasião, mas é totalmente a favor do referendo revogatório na Venezuela, chegando a definir o presidente Nicolás Maduro como ditador.
O primeiro ponto é justamente este: o impeachment no Brasil provocou longas e fundamentadas discussões a respeito da sua legitimidade, uma vez que, mesmo previsto em lei, necessitaria, para ser acionado, de um crime de responsabilidade. O referendo revogatório é diferente. Trata-se de instrumento político previsto constitucionalmente, de recall do governante. Não tem cabimento que ele seja chamado de "traição" ou "golpe parlamentar". As diferenças, que começam aí, são tão profundas quanto o Mar do Caribe.
Outra: o chavismo em geral e Maduro em particular são peculiares: 1) mais de cem presos políticos nas cadeias venezuelanas, 2) cancelamento de eleições regionais em que a derrota do governo é tida como certa (e assim há a manutenção artificial da maioria de governadores), 3) altíssima truculência, 4) suspensão da coleta de assinaturas para o referendo revogatório em que também a derrota de Maduro é certa, 5) uso desmedido das emissoras públicas em proveito próprio, 6) confusão entre governante e a figura da pátria (o oposicionista é um "apátrida"), 7) rejeição ao Legislativo, inclusive com a apresentação da lei orçamentária ao Judiciário (sim...) tomado pelo chavismo, 8) caos socioeconômico e falência institucional, 9) uso de estratégias como a de conversar com um "passarinho médium", supostamente incorporado por Hugo Chávez, 10) ausência de qualquer traição intestina, mas sim a existência de um clamor popular de gente que enfrenta milícias oficiais, passa horas em filas para comprar um quilo de farinha, passa fome e morre por não ter acesso aos produtos mais básicos, entre alimentos e remédios.
Enfim, não digam que se arma um golpe parlamentar na Venezuela. O que ocorre lá é inquestionavelmente legítimo. O diálogo de que tanto falam só poderia ocorrer se o governo não truncasse o processo legislativo constitucional, que prevê o referendo no meio do mandato e outros mecanismos democráticos. Maduro, depois de inviabilizar todos os procedimentos democráticos previstos na agenda institucional, diz agora que quer conversar. Sobre o quê?!
Aliás, em razão de todas essas medidas contra o processo democrático, eleitoral e legítimo, a oposição também se refere a um autogolpe promovido por Maduro. Nesse caso, os elementos para tal caracterização são mais plausíveis.
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Agora, aos fatos mais recentes, com o agravamento da crise:
- A oposição venezuelana convocou uma greve geral e uma marcha até o Palácio presidencial de Miraflores, após as grandes manifestações de quarta-feira contra o governo de Maduro, que deixaram um policial morto e 20 civis feridos.
- Ao final da marcha de centenas de milhares de pessoas, que ativistas estimaram em 1,2 milhão de manifestantes, os principais dirigentes da oposição anunciaram sua ofensiva para conseguir destituir Maduro, diante da suspensão do referendo revogatório.
"No [dia] 3 de novembro (...) vamos notificar Nicolás Maduro que foi declarado pelo povo venezuelano em abandono do cargo. Vamos fazê-lo em manifestação pacífica que vai chegar ao palácio de Miraflores", afirmou o presidente da Assembleia Nacional, de maioria opositora, Henry Ramos Allup.
- Começamos o processo para declarar a responsabilidade política deste vagabundo que temos no Miraflores - disse Ramos Allup.
A coalizão opositora Mesa da Unidade Democrática (MUD) também convocou uma greve geral de 12 horas para a próxima sexta-feira (28).
Nº 2 do governo, deputado Diosdado Cabello, respondeu dizendo que as forças armadas e os trabalhadores ocuparão as empresas que aderirem à greve geral.
Vejam só a declaração de Cabello: "Conversei com o presidente, empresa que parar, será empresa tomada pelos trabalhadores e pelas forças armadas". "Não há mais volta, vamos ver como ficam as coisas. Aqui não vamos permitir tumulto e você decidirá, senhor empresário, se segue com estes loucos ou trabalha com o governo por esta pátria".
A Assembleia Nacional - dominada pela oposição - resolveu esta semana iniciar um procedimento para acusar Maduro de "abandono do cargo", algo previsto na Constituição, quando o presidente deixa de exercer suas atribuições, e convocou o chefe de Estado a participar de uma sessão na próxima terça-feira.
Maduro instalou o Conselho de Defesa da Nação para avaliar o "golpe parlamentar". Em seguida, dirigiu-se a seus seguidores, que se concentraram nos arredores do Palácio de Miraflores para apoiá-lo, dizendo que "a Assembleia Nacional infelizmente tomou o caminho do desacato à Constituição".
- Roubaram de nós o direito de votar e eu digo: se roubam nosso direito de votar, entramos em outra fase na Venezuela - afirmou o líder opositor de linha moderada Henrique Capriles durante a marcha.
- Hoje estamos dando um prazo ao governo. Eu digo ao covarde que está em Miraflores que em 3 de novembro todo o povo venezuelano virá a Caracas porque vamos pro "Miraflores" - advertiu Capriles.
Vestidos em sua maioria com camisas brancas e bonés com a bandeira da Venezuela, manifestantes saíram de sete pontos de Caracas e se encontraram na autoestrada Francisco Fajardo, tomada pela multidão. Os participantes carregavam cartazes escritos à mão. "Não vamos nos render. Revogatório já".
Na região de Caracas, um policial morreu e outros dois agentes ficaram feridos quando tentavam liberar uma estrada bloqueada por manifestantes, informou o ministro do Interior e Justiça, general Néstor Reverol. "Temos um oficial da polícia do estado de Miranda morto, José Alejandro Molina Ramírez, e há dois oficiais feridos, um por arma de fogo e outro por objeto contundente".
O incidente ocorreu quando os agentes desbloqueavam uma estrada entre Caracas e San Antonio de los Altos, cidade satélite da capital, e foram atacados por manifestantes. Também foram registrados confrontos em cidades de alguns Estados, como Táchira, Mérida e Sucre.
Segundo a ONG de defesa dos direitos humanos Foro Penal, mais de 80 pessoas foram detidas e 20 ficaram feridas durante os protestos. Em um post no Twitter, a ONG reportou que as detenções ocorreram em sete dos 24 Estados do país, a maioria em Nueva Esparta e Sucre, enquanto entre os 20 feridos, três foram baleados em Maracaibo, capital do estado de Zulia (noroeste).
"Boletim de detidos: Guárico: 5. Nueva Esparta: 32. Táchira: 7. Barinas: 4. Miranda: 6. Sucre: 21. Lara: 5", informou o Foro Penal. Conforme a ONG, outras 60 pessoas foram detidas em Aragua, mas libertadas logo em seguida.
A chamada "Tomada da Venezuela" ocorre no que deveria ser o primeiro de três dias para a coleta de 4 milhões de assinaturas (20% do colégio eleitoral), último passo antes da convocação para referendo. A oposição queria evidenciar a rejeição majoritária ao governo de Maduro, ao qual seis em cada 10 venezuelanos estão dispostos a revogar, conforme o instituto Datanálisis.
Em dezembro de 2015, a oposição venceu amplamente nas eleições legislativas e pela primeira vez em 17 anos de chavismo conquistou a maioria parlamentar.
Governo e oposição, que se acusam mutuamente de "golpismo", exploram ao mesmo tempo a possibilidade de um diálogo com a mediação do Vaticano, em meio a uma aguda crise econômica que se traduz em escassez de alimentos e remédios e uma inflação calculada pelo FMI em 475% para este ano.
O governo culpa pela crise econômica "empresários de direita" que buscam desestabilizá-lo, mas a oposição responsabiliza o modelo chavista e sustenta que o revogatório era a última "válvula de escape" de uma população cansada de fazer longas filas para conseguir os poucos produtos a preços subsidiados.
Cogitado para domingo em Ilha Margarita (norte), o início do diálogo foi desmentido em um primeiro momento pelos mais importantes dirigentes opositores, mas posteriormente eles disseram estar dispostos a participar da mesa se as negociações forem realizadas em Caracas.
Mas Maduro insistiu em que "a mesa de diálogo nacional está convocada e eu vou assistir porque eu quero o diálogo pela paz do país". "Que Maduro nos mande fotos da praia, porque não vamos para Margarita", disse Capriles.
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Chama a tenção que Diosdado Cabello, o segundo principal líder do chavismo na Venezuela, afirmou que as Forças Armadas e os trabalhadores ocuparão as empresas que aderirem à greve geral convocada pela oposição contra o governo do presidente Nicolás Maduro. "Conversei com o presidente, empresa que parar, será empresa tomada pelos trabalhadores e pelas Forças Armadas", disse Cabello, deputado e presidente do partido, em seu programa na TV pública.
Onde vai parar tudo isso?