Aparentemente, a oposição venezuelana está dando seguimento ao referendo revogatório, o "recall" de meio do mandato previsto constitucionalmente para avaliação e possível revogação do mandato de Nicolás Maduro. Sempre é importante a ressalva, porém: isso ocorre aparentemente.
O poder eleitoral da Venezuela confirmou que a oposição completou as 200 mil assinaturas necessárias para avançar na ativação do processo. Mas o governo e os chavistas em geral estão certos de que deterão o processo.
- Os 24 Estados cumpriram o requisito de 1% (200 mil assinaturas) de validação de manifestações de vontade, e a certificação será confirmada pela secretaria - anunciou, formalmente, a presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), Tibisay Lucena. Em tese, com o aval do CNE, a oposição pode solicitar o referendo revogatório e habilitar-se como sua promotora, explicou Lucena. Para tal, a MUD terá dois dias, após o qual o CNE disporá de duas semanas para anunciar se aceita a solicitação. Em caso de sinal verde, o organismo contará com 15 dias úteis para fixar a data do próximo passo: o recolhimento de 4 milhões de assinaturas para convocar a consulta.
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Chavista relativiza crise venezuelana
Tudo em tese.
- É provável que a convocação seja na primeira semana de setembro. Isso quer dizer que teremos referendo revogatório antes da última semana de dezembro de 2016 - avaliou o porta-voz da aliança opositora, Jesús Torrealba.
Lucena precisou que, no total, a MUD conseguiu autenticar 399.412 firmas.
No processo de revisão, foram detectadas irregularidades como inconsistências entre firmas e impressões digitais, no que pode constituir casos de "falsidade ideológica". "O Conselho Nacional Eleitoral, diante das irregularidades relativas à possível falsidade ideológica cometida por alguns cidadãos, está solicitando ao Ministério Público que investigue o caso", diz o CNE.
A oposição quer o referendo ainda este ano. Por isso, quer começar o quanto antes a etapa de recolher 4 milhões de assinaturas (20% dos eleitores) necessárias para que se convoque a consulta. Para que o mandato de Maduro seja revogado, deve-se superar o índice dos 7,5 milhões de votos que o elegeram em 2013. De acordo com as pesquisas mais recentes, 64% dos eleitores - algo em torno de 12 milhões de pessoas - querem a saída de Maduro da presidência.
- A revogação é para que se acabem as filas, para que haja medicamentos e comida, para que o dinheiro chegue às pessoas, para que haja segurança. Com Maduro, não resolveremos a crise. Por isso, temos de revogar o seu mandato - disse o ex-candidato presidencial opositor Henrique Capriles.
A MUD acusa o CNE de ser aliado do governo e de atrasar o processo de propósito para evitar que a consulta seja feita antes de 10 de janeiro de 2017.
Esse limite é fundamental: se o referendo ocorrer este ano e se Maduro perder, haverá eleições; mas, se ele for removido depois desta data, os dois anos de mandato que ficarão faltando serão completados por seu vice-presidente. E aí mora o detalhe essencial: o vice, na Venezuela, não é eleito na chapa do presidente, mas escolhido por este como qualquer integrante da esquipe - no Brasil, funciona como se fosse um simples ministro. Chegou-se a cogitar que Maduro preparava a indicação da própria mulher, a procuradora Cilia Flores. A questão é que o chavismo está dividido, e outros setores vetariam essa solução.
Entre os chavistas, na prática não haverá qualquer tipo de referendo.
- Faremos o que for preciso fazer, dentro da Constituição e da lei, para que não haja revogatório em 2016, em 2017 e nem em 2018 - chegou a dizer o número dois do chavismo, Diosdado Cabello.
Horas antes de o CNE fazer o anúncio liberando a continuidade do processo, o secretário americano de Estado, John Kerry, pediu às autoridades eleitorais venezuelanas que não atrasem o referendo contra Maduro.
- A Constituição venezuelana garante o direito dos venezuelanos a que sua voz seja escutada através do processo de referendo - comentou Kerry em entrevista coletiva com a colega colombiana, María Ángela Holguín. - Pedimos às autoridades venezuelanas que permitam que o processo avance de uma maneira oportuna e justa e não joguem com atrasos que representem uma vantagem de uma parte em relação a outra, em vez de uma vantagem da democracia.
A Venezuela enfrenta uma escassez generalizada de alimentos e medicamentos, e uma inflação galopante que, segundo o FMI, atingirá 720% em 2016.
O governo, que atribui a crise à queda dos preços do petróleo e à "guerra econômica" promovida por empresários, diz que não haverá referendo este ano.
PROCESSO AINDA ENFRENTARÁ ARMADILHAS
O tempo para que o processo seja concluído, porém, ainda dependerá do CNE. Na primeira etapa, o órgão, dirigido por aliados do governo, usou todos os prazos completos previstos na lei, mesmo quando a oposição atendeu às exigências de forma antecipada. A oposição reclama da demora e vê nela uma conduta ardilosa do governo, que se apega até mesmo a feriados que interrompam o trabalho dos órgãos públicos - sob a alegação de que o objetivo é economizar energia em meio à crise existente também nesse setor.
Os chavistas não negam a pretensão de esticar o prazo o máximo possível, se a consulta for inevitável, embora ainda tentem cancelá-la no CNE e no Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), também dominado por aliados do governo. A principal justificativa é a de que a oposição fraudou as assinaturas. O chefe da comissão chavista sobre o referendo, Jorge Rodríguez, diz que o referendo está "legalmente morto". Para Rodríguez, a solicitação "é a fraude mais gigantesca da história da Venezuela".
- Esse processo está totalmente impugnado por nós, em todas as instâncias. É uma questão de tempo para que seja anulado - diz ele.
PRESIDÊNCIA DO MERCOSUL
Outro elemento que pode influir na realização do referendo e também na situação dos quase cem presos políticos venezuelanos é o Mercosul. Acusada de viver uma democracia imperfeita ou quase uma ditadura, a Venezuela, em tese, seria o próximo país a presidir semestralmente o bloco regional.
Na segunda-feira à noite, a Argentina propôs que seja feita uma reunião de coordenadores para destravar as divergências sobre a Venezuela assumir a presidência pro tempore, vaga desde que o Uruguai considerou seu período concluído - informaram fontes da Chancelaria à agência de notícias France Presse (AFP). De acordo com essa fonte, "a Argentina considera que nenhum país pode assumir a presidência pro tempore sem passagem e, por isso, propõe uma reunião de coordenadores para solucionar esse problema".
O objetivo é que haja reunião como estabelece o protocolo do bloco "para preservar as formas do Mercosul", disse a fonte, que pediu anonimato.
O Paraguai e o governo brasileiro, cuja legitimidade também é contestada por muitos, não aceitam que a Venezuela assuma a condução do bloco - a qual cada sócio exerce por seis meses - devido à crise política no país petroleiro.
O chanceler paraguaio, Eladio Loizaga, disse na segunda-feira que seu país não reconhece a decisão da Venezuela de se "autoproclamar" na presidência do Mercosul e assegurou que dirigirá o bloco regional com Brasil e Argentina.
- O Paraguai não aceita essa autoproclamação por parte da Venezuela no exercício da presidência pro tempore do Mercosul - afirmou Loizaga em entrevista coletiva no Palácio de Governo, em Assunção.
Na sexta-feira, o Uruguai deu por concluída sua gestão na presidência rotativa do Mercosul, sem anunciar a passagem do posto a nenhum dos sócios do bloco, de acordo com um comunicado da chancelaria. "Tendo vencido o período de seis meses" consagrado na normativa interna do Mercosul, o Uruguai "finalizou sua presidência pro tempore", comunicou o texto uruguaio. Em tese, o posto corresponderia à Venezuela pelo critério da ordem alfabética.
Loizaga criticou o Uruguai por ter deixado a presidência com a situação inconclusa. "Nós, Argentina e Brasil estamos segurando essa bola. Vamos ter uma reunião possivelmente nesta semana entre os coordenadores para ver as alternativas que serão apresentadas", explicou o ministro das Relações Exteriores no Paraguai, sem dar mais detalhes.
- Vamos buscar os caminhos que nos levem à normalização da presidência do Mercosul - garantiu, explicando que o Protocolo de Ouro Preto indica o método para o exercício da presidência respeitando a rotação por ordem alfabética dos países, mas que isso é feito na reunião de chanceleres, com a presença de chefes de Estado, conhecida como "Cúpula do Mercosul".
- Há 25 anos o Mercosul tem por costume esse procedimento - afirmou, acrescentando que o governo de Nicolás Maduro "tem compromissos em moratória" como o atraso no cumprimento de normas que deve incorporar a seu sistema legal interno, entre eles o protocolo em matéria direitos humanos.
A Venezuela foi o último Estado a se integrar ao Mercosul de forma plena, juntando-se aos fundadores Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.