É muita hipocrisia que se espalha por todos os cantos na nossa região latino-americana - e o Brasil, infelizmente, não está fora disso.
Mas a Venezuela é a campeã.
A máxima corte venezuelana, cujos magistrados são declaradamente de maioria absoluta chavista, declarou inconstitucional uma lei de anistia aprovada pelo parlamento, tal como havia pedido o presidente Nicolás Maduro.
O Tribunal Supremo de Justiça "declara a inconstitucionalidade da Lei de Anistia e Reconciliação Nacional, sancionada pela Assembleia Nacional em 29 de março de 2016", para libertar líderes opositores presos, informa a decisão do TSJ publicada em sua página na internet.
Nunca é demais repetir: são PRESOS POLÍTICOS, que foram para trás das grades porque supostamente incitaram a violência em protestos contra o governo. Detalhe: a esmagadora maioria das 43 pessoas que morreram naqueles eventos de 2014 eram da oposição e foram abatidas por policiais - do governo.
Sério: Kafka, García Márquez e Dias Gomes foram proféticos. Que "realismo fantástico" que nada. É, pura e simplesmente, realismo - cotidiano.
A decisão ocorre após Maduro enviar a lei ao TSJ para um exame na Sala Constitucional, alegando que sua aprovação deixaria impunes violações dos direitos humanos e desataria uma espiral de violência no país.
O deputado opositor Henry Ramos Allup, presidente do parlamento, antecipara na sexta-feira que a lei seria declarada ilegal, reafirmando sua denúncia que o Supremo foi transformado no escritório de advocacia do governo chavista.
Em sua longa sentença, a Sala Constitucional justifica sua determinação indicando que a lei inclui "crimes de delinquência organizada que não guardam relação com crimes políticos".
O Supremo também cita vícios de forma e a inclusão na iniciativa de crimes administrativos, o que "vulnera a defesa do patrimônio público e a luta contra a corrupção", além dos "efeitos para a sociedade e para o ordenamento jurídico da falta de reconhecimento dos direitos das vítimas".
Após a decisão, Maduro disse que "o Tribunal Supremo de Justiça deu uma sentença inapelável, declarando inconstitucional a lei que pretendia perdoar os crimes dos golpistas de Estado de 1999 a 2015".
- Agora é acatá-la - disse o presidente, reafirmando seu apelo aos deputados opositores para que participem, nesta terça-feira, da instalação de uma "comissão da verdade" que busque "justiça e reparação das vítimas".
- Convidei todos os setores nacionais, incluindo a representação que a oposição já havia designado há meses para a comissão - acrescentou.
Maduro disse esperar que "a oposição não deixe as cadeiras vazias" na comissão.
A lei de anistia aprovada pelo parlamento tem por objetivo libertar 76 presos políticos, entre eles o líder opositor Leopoldo López, além de beneficiar centenas de "perseguidos e exilados" por sua oposição ao chavismo.
Em setembro passado, López foi condenado a passar quase 14 anos atrás das grades, acusado de incitar a violência nos protestos de 2014, quando a população foi às ruas pedir a saída de Maduro.
As manifestações, por todo o país, deixaram, além dos 43 mortos, 878 feridos, conforme as autoridades.
Fundador do partido Vontade Popular, López foi prefeito de Chacao, na região de Caracas, onde projetou uma imagem de dinamismo e eficiência que o colocou como possível candidato presidencial, mas foi impugnado em duas ocasiões.
Outro líder opositor, Antonio Ledezma, prefeito de Caracas, foi detido em fevereiro de 2015 sob a acusação de conspiração e associação criminosa, e hoje cumpre prisão domiciliar por razões de saúde.
Daniel Ceballos, prefeito de San Cristóbal, capital do Estado de Táchira, destituído pelo Supremo em março de 2014 sob a acusação de ignorar uma ordem judicial para reprimir as manifestações, cumpre prisão domiciliar desde agosto de 2015 por razões de saúde.
Manuel Rosales, ex-candidato presidencial que enfrentou Hugo Chávez nas eleições de 2006, foi preso em outubro passado, em Maracaibo, capital do estado de Zulia, ao descer do avião após seis anos de exílio no Peru. Ex-governador do Estado de Zulia, foi condenado em 2008 por enriquecimento ilícito e atualmente está detido na sede da polícia política em Caracas.
Reação da ONU
A ONU rejeitou nesta terça-feira a decisão da Suprema Corte da Venezuela que considerou inconstitucional a lei da anistia. Expressando surpresa com o parecer do tribunal, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse estar “muito decepcionado” pela situação.
– Estamos muito, muito decepcionados com a decisão do Supremo Tribunal Federal, especialmente considerando que o governo venezuelano pediu nossa opinião legal e respondemos que (a lei) de modo geral estava em conformidade com as normas de direitos humanos – afirmou em entrevista coletiva a porta-voz do Alto Comissariado, Ravina Shamdasani.
– Estamos muito surpresos com a decisão de ontem (segunda-feira), e espero que não seja o fim do caminho, porque, na realidade, esta lei poderia ter sido a base para o diálogo e a reconciliação na Venezuela.
Questionada sobre a independência do poder judiciário na Venezuela, Ravina disse que várias entidades da ONU têm demonstrado a sua preocupação e destacou "a necessidade de uma reforma profunda no sistema judiciário para garantir sua independência do governo e de qualquer grupo político".