Olho para a esquerda e vejo parte da Avenida Getúlio Vargas, algumas palmeiras no canteiro central, logo atrás delas o antigo Parque de Exposições e, bem ao fundo, parte do morro da Embratel. Duas enormes torres de apartamentos com aproximadamente 20 andares me impedem de avistar o encontro do presidente com o romancista diante da paróquia, se me permitem uma charada geográfica para quem conhece o trânsito local.
Olho para a frente e vejo outros prédios altos, mas ainda consigo vislumbrar entre eles as antenas de televisão do Morro Santa Tereza e até alguns gomos do Beira-Rio. Finalmente, olho para a direita e vejo um bom trecho de rio (ou lago, ou seja lá o que você preferir), mas também bastante entrecortado por edifícios.
Estou no 15º andar de um desses arranha-céus de Porto Alegre que Mario Quintana certamente não cogitaria levar para o céu. Subi aqui exatamente por causa do poeta. Fazia muito tempo que eu queria seguir a orientação deixada por José Octávio Bertaso nas páginas do seu livro A Globo da Rua da Praia, em que narra uma curiosidade histórica da literatura gaúcha.
No outono de 1975, quando foi levar-lhe os originais dos Apontamentos de História Sobrenatural para publicação, Quintana caminhou até a janela do sexto andar do prédio da Gráfica da Globo no bairro Menino Deus, observou a vista e exclamou:
– Que belo mapa da cidade!
Em seguida, segundo o relato de Bertaso, retornou à mesa de reuniões e começou a rabiscar no seu bloco de notas. Em poucos minutos, produziu mais um poema e pediu que fosse incluído no livro.
Assim surgiu O Mapa, um verdadeiro hino poético de Porto Alegre. Foi olhando para as esquinas esquisitas daquele bairro antigo que o poeta imaginou a anatomia de um corpo e sentiu a dor infinita da inspiração para produzir uma obra-prima. Eu tinha que ver o que ele viu. Por isso subi no prédio vizinho ao condomínio construído sobre a antiga gráfica e consegui a permissão de um empresário de modas – curiosamente, também chamado Quintana e também do Alegrete – para ir até a janela de seu escritório e lançar o meu curioso olhar sobre o cenário inspirador.
Claro que não vi exatamente o que Quintana viu, pois a cidade mudou bastante desde a década de 70. E mais ainda depois que o próprio poeta, em maio de 1994, transformou-se em poeira ou folha levada no vento da madrugada. Além disso, é provável que me tenha faltado no olhar – talvez também no cérebro e na alma – aquele dom especial para perceber algum suave mistério amoroso em meio ao concreto. Mas a poesia continua lá. Apesar dos edifícios, o Menino Deus ainda é um corpo azul-dourado, como cantou Caetano.