No seu histórico diálogo com o roteirista de cinema Jean-Claude Carrière, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco faz uma candente defesa do livro no seu formato tradicional, em papel: “O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura: uma vez inventados, não podem ser aprimorados”.
Será? Deixemos, por ora, o livro de lado e vamos aos modelos comparativos.
A colher. Contam os historiadores que ela nasceu depois da faca e antes do garfo, já com a finalidade específica de servir como instrumento de alimentação e com o seu formato de concha. Mas foi aprimorada, sim. E não apenas porque evoluiu de madeira, pedra e marfim para o metal. Como todos sabemos, virou também aviãozinho.
Ou será que aquele barbudo nunca foi bebê?
Já o martelo, senhor Eco, teve uma evolução notável e reconhecida. Nasceu rudimentar, é verdade, usado pelos nossos antepassados pré-históricos para quebrar pedras e crânios de inimigos, mas em pouco tempo ganhou características humanas, inclusive na nomenclatura de suas partes: olho, cabeça, orelha e unha. Além disso, virou símbolo ideológico ao lado de sua irmã foice, conjunto que representa o trabalho industrial e o trabalho agrícola. Nesse sentido, cabe reconhecer, ainda não há consenso se foi evolução ou involução.
A roda, sim, evoluiu muito, acho que nisso há concordância. E não foi só do carro dos Flinstones à Red Bull do Verstappen. É o objeto que deu velocidade à vida no planeta e que continua potencializando o trabalho humano, da máquina de costura ao computador. Adquiriu, inclusive, um sentido simbólico capaz de expressar sentimentos, como se pode ver na alegria de uma roda de samba e na fraternidade de uma roda de chimarrão.
E a tesoura? A tesoura corta o tecido com a maior facilidade; mas nenhuma tesoura do mundo cortará nossa amizade – diz um poema popular que evidencia bem o poder deste outro objeto perfeito citado pelo ilustre italiano. Tesouras abriram a própria existência como lâminas precárias destinadas a cortar cabelos e pelos de animais e fecham na atualidade como sofisticados instrumentos elétricos e cirúrgicos, em alguns casos manuseados até por robôs. Além disso, no admirável e assustador mundo novo dos emojis, a tesourinha tem vários significados, entre os quais o de que o usuário está cortando algo ou alguém de sua vida.
Muitos, infelizmente, estão cortando o livro – um objeto que precisa ser lido (e compreendido) para continuar perfeito.