Um dos meus antigos professores faz cem anos nesta quinta-feira (29). Com ele aprendi que esternocleidomastoideo não é um palavrão, mas sim um músculo da face lateral do pescoço, e que o fêmur é o osso mais longo do corpo humano. E aprendi de uma maneira tão impactante quanto inesquecível: acompanhando a dissecação de cadáveres no antigo necrotério da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Refiro-me ao doutor Arnaldo da Costa Filho, um fenômeno de lucidez e longevidade, que foi meu professor de Anatomia Humana na Escola Superior de Educação Física (Esef/Ufrgs) nos anos 1970. Naqueles tempos pretéritos, não apenas nos fez decorar os nomes de todos os ossos e músculos do corpo, como também levou turmas de estudantes — e futuros professores — para aulas práticas no Instituto Anatômico da Faculdade de Medicina.
Nunca mais vou esquecer o cheiro de formol — nem as lições adicionais de respeito e consideração do mestre àqueles mortos anônimos que continuavam contribuindo com o ensino e a pesquisa. Também foi marcante para mim o dia em que ele se retirou da aula, deixando a cargo de sua auxiliar a tarefa de sacrificar um cão para observarmos o funcionamento do sistema circulatório.
– Sou cinófilo, não posso ver isso! – disse e saiu.
Só mais tarde fomos descobrir que cinofilia significa amor pelos cães.
Pois esse homem que amava os cachorros, como o personagem do cubano Leonardo Padura, também amava o futebol (foi o primeiro médico de um time profissional no Estado, com o histórico Grêmio Esportivo Renner) e continua amando a música. Com um século de vida, mantém afinada sua voz de Vicente Celestino. Quando fez 99 anos, gravou um vídeo emocionante, que pode ser visto no YouTube (veja abaixo), no qual ele interpreta belas canções de Lupicínio Rodrigues, além de outras igualmente significativas da sua época de juventude.
Ao ouvi-lo cantar Estão Voltando as Flores, que também foi gravada por Emílio Santiago, percebo que dois versos sintetizam emblematicamente sua impressionante biografia:
– Vê, como é bonita a vida. Vê, há esperança ainda.
Fica aqui, portanto, minha homenagem ao aniversariante do dia e meu reconhecimento ao professor de Anatomia que também tratava da alma humana em suas aulas — e que continua dando exemplo de esperança e amor pela vida.