Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Eu era estudante de Medicina, estagiava na Santa Casa e fui convocado por um cirurgião para auxiliá-lo numa operação de emergência, uma traqueostomia a ser realizada, já não lembro por qual razão, num paciente com tuberculose avançada. A cirurgia, que normalmente é simples, revelou-se extraordinariamente difícil, o campo operatório estava cheio de sangue e de secreção. De repente, senti uma dor aguda num dedo. O médico acabava de me cortar com o bisturi. E ficou alarmado. Afinal, tratava-se de um ferimento possivelmente contaminado.
Meus professores fizeram uma reunião para discutir o assunto. Teria eu sido inoculado, de forma inusitada, com o bacilo da tuberculose? Provavelmente não, mas por via das dúvidas mandaram que eu tomasse seis meses hidrazida, um dos medicamentos usados para a tuberculose. O que eu não fiz. Lá pelas tantas enchi o saco de tomar remédio e parei. Não aconteceu nada.
A mesma sorte não teve o médico americano Mahlon Johnson. Em "Possível Milagre " (Companhia das Letras) ele conta a sua tragédia: autopsiando o cadáver de um paciente de Aids, ele cortou-se e infectou-se com o vírus. Azar terrível (não faltará quem veja neste acidente um inconsciente desejo de autoliquidação), mas o doutor Johnson não se deixou abater. Entrou num grupo de pacientes que está tomando o coquetel anti-HIV.
Outro faria um escarcéu, mesmo porque as luvas fornecidas pelo hospital não eram das que dão mais proteção. O doutor Johnson não endossa essa atitude: "Faz parte do meu trabalho", diz, "ficar exposto ao perigo." E, podemos acrescentar, transformar o infortúnio em algo benéfico para outros.
Há um outro caso, este ainda mais extraordinário. Trata-se do estudante de Medicina peruano Daniel Carrión. À época em que estava na faculdade, fins do século 19, discutia-se sobre duas situações meio freqüentes na região, uma doença de pele conhecida como verruga peruana e uma outra doença, do sangue, chamada febre de Oraya (porque dizimava os trabalhadores que construiam a ferrovia de Oroya, nos Andes). Uns diziam que se tratavam de doenças diferentes, outros, que eram duas formas de uma mesma doença. Daniel partilhava dessa última opinião - ardorosamente. Tão ardorosamente que decidiu se inocular com material colhido de um paciente com verruga peruana. Os professores e colegas tentaram dissuadí-lo, sem êxito. Na manhã de 27 de agosto de 1885 Carrión (afinal ajudado por um colega) tirou sangue de um menino com verruga e inoculou-se em si mesmo. Adoeceu - com febre de Oroya - e afinal veio a morrer, depois de uma longa agonia. Provando, contudo, que estava certo.
Morte, onde está teu ferrão? - pergunta a Bíblia, anunciando o reino de Deus. Os médicos conhecem o ferrão da morte, às vezes por experiência própria. Daniel Carrión procurou-o, Mahlon Johnson tenta transformá-lo num possível milagre. São muitas as armadilhas do destino e muitas as maneiras pelas quais a elas podemos reagir. Entre o descaso e o auto-sacrifício há uma gama de possibilidades, várias sensatas e até generosas. Elas não neutralizam o ferrão da morte, mas transformam-no numa chave para a porta da vida.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"
- 23/01/2000: "Um intérprete, por favor"
- 22/02/2003: "O que a literatura tem a dizer sobre a guerra"
- 31/05/2003: "Literatura como tratamento"
- 19/10/1996: "A língua do país chamado memória"
- 06/02/2000: "A tribo dos insones"
-15/06/2003: "Um dia, um livro"
- 27/09/2008: "A doença de Machado de Assis"
-20/08/1997: "Médicos e monstros"
- 20/02/2000:"A invenção da praia"
- 06/11/2007: "Ler faz bem"