Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Para um descendente de emigrantes judeus-russos, ser confundido com um americano – coisa que comigo acontece com certa freqüência em várias cidades brasileiras – talvez represente uma ascensão na escala social. Eu acho uma coisa constrangedora. Constrangedora, mas, apresso-me a dizer, explicável: um americano sempre desperta mais interesse do que um nativo de Porto Alegre. É um fenômeno que continuará enquanto o real valer a metade do dólar, e enquanto os Estados Unidos comandarem o processo da globalização.
Uma vez, em São Paulo, entrei numa barbearia, dessas de subúrbio, para cortar o cabelo. O barbeiro olhou-me e mostrou a tesoura, com ar interrogativo. Acenei com a cabeça e sentei-me. Ele sorria e fazia alguns sinais em mímica que eu não entendia bem. Àquela altura, estava achando que o homem era mudo. Situação que deveria ser incompatível com a profissão de barbeiro – quem sabe, porém, aquela era uma exceção, uma simpática e comovedora exceção? Mas o homem não era mudo. Lá pelas tantas, olhou-me e perguntou:
– Não fala?
Eu não sabia a que ele estava se referindo. Continuou:
– Não fala português?
Claro que falo, repliquei. O que despertou nele visível irritação: eu pensei que você era americano, disse (obviamente, esperava uma gorjeta em dólar). Daí por diante, a tesoura foi manejada com uma violência espantosa, e meus cabelos, juncando o chão, arcaram com o ônus de ter nascido no Brasil.
Agora que o turismo está aumentando, pode-se esperar mais dessas confusões. Esses tempos estive na Praia dos Ingleses, em Florianópolis, num hotel que estava cheio de argentinos. O garçom que nos servia o café da manhã dirigia-se a mim num lamentável portunhol. Lá pelas tantas, perdi a paciência e disse-lhe que poderia falar em português. O que o rapaz não conseguiria fazer:
– Es que soy argentino – disse, com um suspiro. Portanto, nem todos os hermanos que aqui estão são turistas. Há garçons também. E eles têm todo o direito ao portunhol.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"
- 16/03/1996: "Os dilemas do povo do livro"