Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Exilado durante dois mil anos, o povo judeu fez do texto (a Bíblia, o Talmud, as obras de grandes escritores) a sua pátria. O que acontece, porém, quando este povo passa a ter uma pátria situada, não no imaginário, mas no contexto da geopolítica?
Esta é a pergunta que me fiz várias vezes em Israel. E que não é, evidentemente, uma dúvida só minha. Trata-se de uma questão - vital, inquietante - que ocorre a toda uma geração.O que desencadeia o problema é, em primeiro lugar, o rumo tomado pela intelectualidade judaica no mundo e, em segundo lugar, mas não menos importante, a emergência de um grande grupo de escritores israelenses, cuja obra já é bastante significativa.
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Estive com três destes escritores: Aharon Appelfeld, David Grossman e A.B.Yehoshua. Dois outros não me foi possível encontrar: Amos Oz e o poeta Yehuda Amichai.Estes cinco estão, seguramente, entre os principais autores de Israel, ainda que Apelfeld, como já veremos, se constitua em caso à parte.
O que há de comum entre eles? Em primeiro lugar, escrevem em hebraico, o que já é um milagre: durante dois mil anos, este foi um idioma praticamente litúrgico, o latim do povo judeu. É verdade que obras surpreendentes como O Cântico dos Cânticos estão em hebraico, mas o escritor precisa contar com elementos da língua viva, como a gíria, as expressões populares - que só agora estão surgindo em Israel. Mesmo assim, há contos, romances e poemas que aproveitam todo o encanto peculiar e austero do idioma.
Grossman, A.B.Yehoshua e Amos Oz são sabras, israelenses nativos. Isto também é uma novidade: até há pouco tempo, os escritores em Israel eram emigrantes; a sua língua nativa era outra, a sua cultura de origem era outra. Nascer em Israel faz uma diferença tremenda: significa viver, desde a infância, num país em permanente efervescência, um país onde o avanço social (o kibutz, o sistema de seguridade social), científico, cultural, foi acompanhado de perto pela inquietação resultante do permanente estado de beligerância. O conflito árabe-israelense está muito presente na obra destes autores. Ilustrativo é o caso de David Grossman. Escritor e jornalista ainda jovem (está na casa dos 40), ele foi encarregado por uma revista de fazer uma série de reportagens sobre os territórios ocupados. O resultado foi um livro, Vento Amarelo, que, publicado em 1987, causou imediata comoção, em Israel e em outros países. Grossman descrevia a sombria situação em que viviam os palestinos, dependendo de Israel para conseguir trabalho e ao mesmo tempo abominando a ocupação. "Eu antes temia os israelenses'', disse um dos entrevistado."Agora eu os odeio.'' O título alude a uma lenda árabe, segundo a qual um "vento amarelo'' soprará do deserto calcinando os inimigos do Islam.
O trabalho de Grossman despertou furiosas reações. O então primeiro-ministro, Itzchak Shamir, acusou-o de distorcer os fatos e de fazer o jogo dos inimigos de Israel. Mas o escritor tinha razão: três meses depois começava a intifada, o levante palestino nos territórios que acabou levando, ainda que de forma indireta, às conversações de paz. Grossman funcionou como um profeta.
Profetas modernos. Esta é a expressão que o jornal Sunday Telegraph usou a propósito de um outro, e talvez mais conhecido, escritor israelense, Amos Oz. Nascido em kibutz, Oz escreve sobre esta incomum experiência de vida coletiva e também sobre as questões políticas. Seu último livro chama-se, significativamente, Israel, Palestina e Paz. Vale a pena citar os parágrafos finais: "Dois povos teimosos (judeus e palestinos), dois povos conhecedores do sofrimento e da perseguição, dois povos que mostraram, através de uma luta de gerações, que são capazes de determinação e também de devoção - estes dois povos agora têm a chance de usar estas qualidades na construção de uma casa semi-separada.
Mesmo um longo e amargo conflito pode às vezes criar uma espécie de intimidade profunda e secreta entre inimigos. Esta intimidade deve ser usada para reconstrução e reabilitação. Existe, claro, um longo caminho a percorrer, um caminho cheio de fúria e desapontamento, mas pode se ver ao longe as primeiras, e hesitantes, luzes da esperança.'' Fúria e desapontamento: as palavras de Amos Oz, escritas em 1993, logo depois da assinatura do acordo de paz, descrevem a sensação depois dos recentes atentados em Israel. Profético, realmente.
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"We don't need you anymore'', nós não precisamos mais de vocês. As palavras do iconoclasta A.B.Yehoshua, na abertura do Congresso Mundial Judaico, provocaram acirrada polêmica e obrigaram o autor do consagrado romance O Senhor Mani a dar muitas explicações. O que ele queria dizer é que Israel, às vésperas de seus 50 anos, já pode caminhar por suas próprias pernas: é um país forte, militarmente, economicamente, cientificamente. Absorveu uma emigração de 700 mil russos, ou seja, 15% da população (imagine-se 22 milhões de pessoas chegando de repente ao Brasil), e pode ser a base do mercado comum da região.
Há um orgulho em ser israelense e há também um orgulho em ser um escritor israelense. É isto que coloca Aharon Appelfeld numa posição - paradoxalmente - sui generis. Europeu sobrevivente do Holocausto (criança ainda, foi salvo por camponeses ucranianos e depois por uma prostituta, que o adotou), Appelfeld volta constantemente ao tema do extermínio do povo judeu. Por isso, e embora viva em Jerusalém, é considerado um escritor da diáspora. E diáspora nem sempre evoca a melhor das imagens como mostra o poeta Yehuda Amichai em seu Turistas:
"Eles estão aqui para visitas de condolências; é o que fazem,/ sentando no Memorial do Holocausto, fazendo cara séria/ no Muro das Lamentações,/ mas rindo atrás das pesadas cortinas dos quartos de hotel.''
O poema prossegue com uma narrativa:
"Uma vez eu estava sentado nos degraus perto da Cidadela de David com dois pesados cestos a meu lado. Um grupo de turistas estava ali, ao redor de seu guia, e eu tornei-me um ponto de referência: 'Vêem aquele homem com os cestos? Um pouco à direita de sua cabeça há um arco do período romano.' E eu disse a mim mesmo: a redenção virá quando alguém disser a eles: 'Vêem aquele arco do período romano? Ele não tem nenhuma importância, mas perto dele está um homem que acabou de comprar frutas e verduras para sua família'.''
Conciliar o passado judaico com o presente sabra parece ser o principal dilema da literatura israelense. Na verdade, ele é o grande dilema judaico neste final de milênio. Um dilema que, pelo menos, não implica a ameaça do extermínio físico. O que já é um grande consolo.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"
- 14/11/1999: "Os livros de cabeceira"
- 22/02/2003: "Um anêmico famoso"