Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Para onde vão os livros adquiridos na Feira do Livro? Qualquer que seja o seu destino final, há um lugar pelo qual passam obrigatoriamente: a mesa de cabeceira.
Esses tempos fiquei olhando a pilha de livros em minha mesa de cabeceira. Ela tinha uma altura capaz de humilhar qualquer Himalaia, mas não a mesma firmeza; na verdade, vacilava perigosamente, como muitas vezes tem acontecido com o escritor dono dos livros, e ameaçava cair de um momento para outro, talvez até sobre a atormentada cabeça do ocupante da cama. O que seria, convenhamos, morte gloriosa. Perecer sob o peso da cultura é tudo que um adito ao texto pode pedir a Jeová.
A mesa de cabeceira é um móvel curioso. Não serve para guardar muita coisa: tem uma gavetinha, onde estão objetos de urgência - certos medicamentos, lenços de papel, preservativos, às vezes, uma lanterna elétrica, um revólver no caso daqueles que pretendem defender com mais furor suas propriedades (mas esses, em geral, não fazem parte do grupo de leitores). Nas mesas antigas havia também uma portinhola, e atrás dela aquele prosaico e útil objeto, o urinol. Afora esses poucos guardados, a mesa servia e serve, sobretudo, como suporte: da lâmpada de cabeceira, do rádio, do controle remoto, do desagradável despertador. Ah, sim, e dos livros. Que livros a gente coloca ali? Livros especiais, sem dúvida. Livros aos quais voltamos freqüentemente. Livros para ser relidos, não lidos. A leitura de cama é mais uma leitura prazerosa do que séria. Ela não tem um objetivo; não queremos terminar o livro. Queremos lê-lo até que o sono nos vença. Queremos adormecer com esse livro caído sobre o nosso peito. O que lembra a história daquele escritor que, passando as férias num resort qualquer, encontrava todos os dias um cidadão adormecido numa cadeira preguiçosa e segurando um livro dele, escritor. Uma manhã, o autor não agüentou: acordou o sonolento leitor e lhe perguntou quanto queria para dormir com uma obra de um escritor rival.
Mas nós queremos, sim, adormecer segurando o livro de cabeceira. Porque isso nos remete à infância, àquelas noites em que não queríamos ir para a cama e nosso pai ou nossa mãe dizia: "Deita que eu te leio uma história". Dessa história nunca escutávamos o final. O que queríamos era deixar o mundo dos adultos e penetrar no mundo misterioso, fascinante mas às vezes ameaçador, que é o mundo dos sonhos, o mundo onde criaríamos a nossa própria e estranha ficção.
Há uma continuidade entre sonho e literatura. São países limítrofes. E o posto da fronteira é representado, justamente, pela mesa de cabeceira. Dali os livros, amáveis guardiões, nos vigiam. Se quisermos, eles até nos acompanham nos primeiros passos de nossa jornada em território estranho. Eles são como nossos pais, e por isso sempre voltamos a eles. O tamanho da pilha de volumes em nossa mesa de cabeceira é apenas uma fração do tamanho de nossa emoção e de nosso encanto.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
- 25/09/1995: "É o ano da paz?"
- 09/01/2000: "As sete catástrofes que nunca existiram"