Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
Em seu início a Bíblia mostra que os hebreus partilhavam com outros povos da antigüidade uma série de relatos míticos: a criação do mundo, o surgimento do primeiro ser humano, o dilúvio universal. Depois, a narrativa se acelera e passa a descrever a evolução de um povo em busca de seu destino. O mito dá lugar à História.
Da História o judaísmo é um guardião. Daí a valorização que confere ao ano-novo. Não se trata apenas de celebração. O primeiro dia do ano dá início a um processo de meditação e avaliação que terminará com o Iom Kipur, o Dia do Julgamento. A ética judaica confere ao tempo o papel de grande juiz; vê na História o antídoto contra o mito, a raiz do fanatismo pelo qual os judeus pagaram um preço tão alto.
É muito significativo, portanto, que o novo tratado de paz do Oriente Médio, ampliando a autonomia palestina na Cisjordânia, tenha sido assinado às vésperas mesmo do ano-novo judaico. Não se trata, é bom dizer logo, de um presente de festas. Um tratado de paz não é a paz, sobretudo numa região do mundo em que documentos deste tipo têm valor dúbio, para dizer o mínimo. Ao contrário: é bem possível que os opositores da negociação, em ambos os lados, desencadeiem uma nova escalada de terrorismo. Os choferes de ônibus das cidades israelenses, alvos recentes, terão de redobrar os seus cuidados.
Mas o tratado mostra, sim, que a História está avançando. Mudam as características do conflito: já não se trata de árabes versus israelenses. A briga no Oriente Médio hoje se trava entre fundamentalistas e modernizadores (qualquer que seja o sentido que se dê ao termo modernização). É muito significativo que o status da cidade de Hebron, um dos grandes obstáculos para a negociação, tenha sido equacionado. Hebron é uma cidade de lugares sagrados para o judaísmo. Aliás, o problema da região é justamente este, a quantidade de lugares sagrados. Quando a posse de tais lugares gera o derramamento de sangue, estamos diante de uma situação que religião nenhuma aprovaria, mas que faz parte do obscuro território das emoções primitivas.
Os lugares são importantes, mas as pessoas não são menos importantes, concluíram os negociadores. Eles sabem que a discussão de Hebron é fichinha, comparada com a que se travará em relação a Jerusalém que aliás está completando 3 mil anos sem conhecer paz duradoura. E ainda há a polêmica sobre o Estado palestino. Mas Rabin mostrou como é conduzido o complicado processo ao dizer: "Hoje, sou contra o Estado palestino. Amanhã, veremos". Ou seja: uma coisa de cada vez e nenhuma regra fixa.
Falando em ônibus, lembro um incidente que presenciei em Tel Aviv, às vésperas do ano-novo. Embarquei num coletivo intermunicipal, cheio de gente que ia passar o feriado em casa. O chofer já dava a partida quando se ouviu um grito: um homem apontava algo no chão.
Era um tubo de metal. Pequeno, mas naquela época, como hoje, os atentados terroristas eram uma ameaça constante. De imediato gerou-se uma discussão, o que me pareceu meio estranho - se se tratava de uma bomba, o melhor era descer do veículo. Mas, no Oriente Médio, o bate-boca tem precedência. A gritaria acabou acordando uma velhinha que dormia no último banco. Aproximando-se, ela olhou o objeto e exclamou, muito contente: "Meu batom! E eu pensei que o tinha perdido!"
Escusado dizer que todos ali se solidarizaram com a alegria dela. Afinal, a senhora tinha direito de entrar no ano novo bonita, contente - e em paz.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
- 14/09/1997: "Sobre centauros"
- 04/11/1995: "Literatura e medicina, 12 obras inesquecíveis"
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