Médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Moacyr Scliar nasceu em Porto Alegre em 1937 e faleceu na mesma cidade em 2011. Autor de romances, ensaios e livros de crônicas, Scliar colaborou com Zero Hora por mais de 30 anos.
A gauchidade tem muitas e estranhas portas, ou porteiras, como quiserem. Alguns são gaúchos porque nasceram no pampa; outros, os emigrantes, vieram de locais distantes, mas acabam incorporando a condição de gaúcho - graças ao chimarrão, ao churrasco, e sobretudo graças ao imaginário que acabamos todos partilhando.
Aí entra o centauro. Todo mundo sabe que o gaúcho é conhecido como o centauro dos pampas. Trata-se de uma alusão à mitologia grega originária, diz-nos Antonio Hohlfeldt, do Partenon Literário, aquele grupo de intelectuais rio-grandenses que sonhava construir, no bairro que hoje leva esta grega denominação, uma réplica do templo de Atenas, para lá cultuar as letras. O Partenon jamais saiu do projeto, mas o centauro ficou, galopando na mente dos gaúchos, e unindo de alguma forma a Grécia antiga ao pampa.
Eu sempre quis escrever sobre o centauro. Comecei com uma crônica, que foi publicada aqui em Zero Hora em mui priscas eras. Depois escrevi um conto que o Marcos Faerman, o Marcão, perdeu (segundo o Luis Fernando Verissimo, o Marcão, quando interrompia a leitura de um livro, marcava a página com a mortadela do sanduíche que estava comendo. Não vejo nada de mais: unia a nutrição espiritual à material). Do conto, passei para uma pequena novela e, quando dei por mim, estava datilografando furiosamente as páginas de um romance. O Beto Scliar, que na época tinha uns dois anos, ficava por conta com o pai, que ao invés de brincar com o filho, brincava com a máquina de escrever. Um dia subiu na mesa, sentou em cima da máquina e garantiu: "Agora tu não escreves mais". Se ele fizesse a mesma coisa hoje, com 18 anos, eu teria dificuldade de removê-lo, mas à época era mais fácil.
Difícil era resolver certos detalhes da trama. O meu centauro não era apenas grego e gaúcho; era judaico também. Como tal, tinha de ser submetido à circuncisão. O que levantava uma dúvida: é possível aplicar a lei de Moisés a eqüinos? Têm eles condições, não espirituais, mas anatômicas, para tal? Na dúvida, consultei um amigo veterinário. Ele me olhou como se eu estivesse prestes a ser internado, mas acabou confessando que não sabia me responder e que ia fazer uma pesquisa a respeito. Dias depois voltou com a alvissareira resposta: sim, cavalos têm prepúcio e, devidamente contidos, podem ser circuncidados. Quem ficou em dúvida fui eu: estaria ele dizendo a verdade ou recorrendo a uma mentira piedosa? (Piedosa para o autor, não para o centauro, bem entendido). Acabei decidindo que um ficcionista pode tomar liberdades com prepúcios alheios, mesmo os de cavalos. A circuncisão foi feita a páginas tantas, com muito êxito, e, pretende este autor, se constitui num marco para a construção do sincretismo gaúcho.
Trabalhar com o centauro teve uma vantagem adicional. De um escritor de ficção sempre se suspeita que seu relato possa ter algo de autobiográfico. Posso garantir, com muitos testemunhos, que jamais fui um centauro. Talvez tenha sido cavalar, sobretudo na adolescência, quando meus pais muitas vezes tiveram de agüentar o meu mau humor, mas não passei disto. O centauro continua sendo uma abstração. Mesmo quando, saindo do Partenon, corre livre e orgulhoso pelo pampa do nosso Rio Grande.
Confira a seleção de crônicas publicadas por Scliar em Zero Hora:
- 26/03/2000: "Quem és tu, porto-alegrense?"
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