Antes de Brasil e Gana, vitória por 3 a 0, Tite deu entrevista e brincou com os repórteres se caracterizando como "faceirinho". Para o restante do país, uma expressão que nada tem a ver com futebol. Para os gaúchos, pode soar como crítica ou elogio, depende de como o interlocutor recebe a palavra. Para mim, que gosto de futebol ofensivo, seria elogioso. Para meu amigo Pedro Ernesto, um insulto.
Faceiro, você sabe, é condição atribuída ao time ofensivo, disposto a correr riscos, apaixonado pela ideia de fazer gol mais do que de evitar sofrer gol. A brincadeira do técnico da Seleção Brasileira tem fundo de verdade. Tite argumentou com seu Caxias campeão gaúcho de 2000 em cima de um Grêmio, então milionário. Aquele Caxias bom de ver jogar tinha Ivair e Titi como volantes de boa marcação e bom passe. Adiante, Gil Baiano e Maurício, dois meias, o primeiro de movimentação e o segundo, armador da gema. À frente, um atacante de velocidade, Jajá, e um centroavante de referência, Adão.
Na ida daquela decisão, o Caxias aplicou 3 a 0 no visitante e o melhor em campo foi Sílvio, goleiro do Grêmio. No Olímpico, um 0 a 0 onde o Caxias colocou bola na trave do anfitrião. Tite me disse, tempos depois, que usou numa preleção aos jogadores um comentário que fiz em jornada da TVCOM em vitória do Caxias contra o Inter-SM. Lembro do jogo no Centenário e dos muitos elogios que dediquei à ofensividade do time. Durante o campeonato, o Caxias já havia vencido o Grêmio no Olímpico. Foi um ano encantado para o treinador, o que marcou seu salto de patamar para uma carreira que depois se mostraria ainda mais vitoriosa.
Tanta reminiscência vale para atualizar o trabalho de Tite e o que ele pretende para a Copa do Catar. Contra Gana, na França, ele testou um quinteto ofensivo que faz sonhar com um futebol de muitos gols a favor, mas também faz temer um futebol de muitos gols contra caso os artistas não se transformem em operários sem a bola nos pés. Aqui reside o grande desafio para Tite e sua faceirice adaptada aos novos tempos. Se ele se autorizou a formatar time ofensivo com as peças que tinha no Caxias, é natural que sonhe fazer uma equipe ainda mais ofensiva tendo em mãos, por exemplo, Lucas Paquetá, Neymar, Raphinha, Vinícius Júnior e Richarlison, Pedro ou Gabriel Jesus.
Pode dar muito certo, claro que pode. Todos os citados jogam em clubes gigantescos da Europa, onde o conceito de futebol total não precisa ser ensinado ou reforçado. Está na natureza do jogo de clubes ingleses, alemães, espanhóis, italianos, franceses e afins o equilíbrio entre defender e atacar, o quanto estas tarefas precisam ser compartilhadas e exercidas à medida da necessidade.
De todos os citados, só Neymar tem, no clube de origem, o direito de marcar menos. Vale para Messi e Mbappé, o trio pelo qual os outros sete de linha correm para retomar a bola e dá-la aos solistas. Não há como cogitar na Seleção Brasileira, em uma Copa do Mundo, abstenção de serviço defensivo para ninguém, muito menos se a ideia for encarar o torneio com tanta ousadia.
Uma possibilidade forte para afiançar a audácia do técnico gaúcho é a escalação de Éder Militão na lateral-direita. Não seria improvisação, jogava neste lugar na base do São Paulo. Depois, virou grande zagueiro no Real Madrid, o que não impede sua volta à outra posição que conhece. Militão, neste caso, seria a adaptação, com as devidas proporções, do que fazia o lateral-direito Jairo Santos naquele Caxias citado no início da coluna. O defensor compunha um terceiro zagueiro com Émerson e Paulo Turra, a dupla de zaga do campeão gaúcho de 22 anos atrás. Neste contexto, Éder Militão, Thiago Silva, Marquinhos e Alex Sandro ou Alex Telles formariam um muro defensivo de quatro jogadores com menos funções de frente. Casemiro seria o quinto elemento à frente deste muro.
Dali para diante, Paquetá, Neymar, Raphinha, Vinícius Júnior e Richarlison teriam que se virar com toda improvisação de que são capazes. E, sem a bola, nada de recreio. Não espero de qualquer deles carrinhos de volante, mas o cerco, o corte da linha de passe, a compactação, ah, isso sim é inegociável.
Não há em nenhuma outra candidata ao título um elenco tão cheio de dribladores como o brasileiro. Afora os titulares, Anthony e Rodrygo no banco seriam alternativas extraordinárias de enfrentamento individual. Para o comando do ataque, Pedro e Gabriel Jesus estão em plena disputada com o centroavante do Tottenham.
Desde 2006, não há tanta qualidade individual no grupo que vai à Copa. Na Alemanha, porém, os três tenores chegaram claramente acima do peso. Ronaldinho, Ronaldo e Adriano, além disso, pareciam entediados, desfocados do que deveria ser a grande Copa de cada um. Nazário até já tinha sido protagonista no penta quatro anos antes. Gaúcho foi brilhante coadjuvante na Coréia do Sul e no Japão. Sua Copa de astro principal era a alemã, mas fracassou.
Adriano chegou pesando mais de 100 quilos. Nas meias, Zé Roberto e Kaká fizeram o possível. Não foi suficiente. Desta vez, no entanto, a impressão é que todos, a começar por Neymar, estão centrados na potência máxima. Sem pachequismo, levando em conta só o potencial dos atuais eleitos de Tite e o quanto parecem determinados, é possível apostar com autoridade na candidatura brasileira. Terá pela frente, em alta performance, Argentina, campeã da Copa América, e França, campeã do mundo. Ainda há a sempre candidata Alemanha, a eterna promessa belga e a interrogação promissora da Espanha de Gavi e Pedri. Será, ao que tudo indica, uma Copa espetacular.