
Afora os prejuízos técnicos que todos os times terão por conta da longa parada, Grêmio e Inter tinham desafios anteriores à pandemia para superar caso pretendessem fazer frente, por exemplo, ao Flamengo, melhor time da América do Sul e, em 2020, também o melhor elenco. Renato Portaluppi e Eduardo Coudet se enfrentaram no primeiro Gre-Nal da Libertadores e suas equipes faziam, até o fiasco da briga no final, uma grande partida. O técnico do Inter, justiça se faça a ele que veio para promover rupturas, finalmente começava a fazer um time diferente do que era visto até então. A chegada do técnico argentino trazia junto a expectativa de que nada neste ano lembraria o jeito retraído de jogar do Inter em 2019.
Você, que frequenta esta coluna, lembra dos muitos reparos que fiz àquela forma de atuar. O conceito levou o Inter até a final da Copa do Brasil e, me parece, também impediu o time do Odair de ser campeão. A direção fechou com aquela ideia de futebol porque concordava com ela e não desprezava a proximidade da mágoa do rebaixamento. O ano seguinte à queda foi de retorno. A seguir, garantir a permanência no seu lugar de origem autorizou Odair a formatar uma equipe fechada que, jogando no erro do adversário, passou a ganhar no Brasileirão e atingiu vaga direta de Libertadores.
O passo seguinte é que não veio. Não houve adaptação ao que a torcida passou a esperar do time. Enquanto avançava na Copa do Brasil, quem discordava do modelo calava porque, afinal, estava dando certo. Porém, ao perder de virada no Beira-Rio para o Athletico-PR no jogo de volta da decisão do torneio, o silêncio virou revolta, e a reação negativa ao trabalho de Odair Hellmann ficou desproporcional. Sua equivocada demissão faltando rodadas para o fim do Brasileirão respondeu à demanda por mudança, mesmo que o autor da ruptura pretendida não estivesse disponível.
Ao chegar, Coudet precisou assegurar presença na fase de grupos da Libertadores e pouco mexeu no espírito defensivo do seu time. Repetiu o tripé de mais força e menos criação no meio-campo, teve que corrigir rumos em meio às seletivas e, enfim, cumpriu a missão. Só então o treinador argentino se autorizou começar sua tarefa principal: transformar o Inter numa equipe capaz de fustigar o adversário, atacá-lo com fome de gol e marcar adiantado. A estreia contra a Católica restou como a melhor atuação do Inter em 2020 e gerou na torcida a espera positiva pelo Gre-Nal. Se a vitória não veio, não foi por falta de desempenho. Colorados e coloradas que foram à Arena saíram orgulhosos e viram o projeto abruptamente interrompido pela pandemia.
No Grêmio, Renato Portaluppi se viu obrigado a renovar o ciclo vitorioso que teve uma fronteira estabelecida no quinteto que o Flamengo o infligiu na Libertadores. Ficou claro que era preciso cortar na carne e fazer novas apostas. Ao mesmo tempo em que perdia Jean Pyerre na mais longa recuperação de lesão muscular de que tive notícia no futebol profissional, o treinador convenceu a direção a testar Thiago Neves e Diego Souza em 2020 como forma de aumentar a qualidade geral do elenco e agregar experiência para as batalhas mais duras. Talvez Renato tenha entendido que a goleada no Maracanã teve origem na falta do que ele chama de malandragem em sua equipe. Romildo foi convencido, Everton não saiu, Maicon parecia recuperado da exaustão do fim da temporada anterior, mas o time demorava em reencaixar.
Se Diego Souza fez até gol de vitória em Gre-Nal e respondia satisfatoriamente, Thiago Neves, não. Alisson resistia titular no corredor ofensivo direito, enquanto Pepê aparecia no retrovisor em alta definição. Finalmente, Jean Pyerre voltava e dava sinais de que logo teria a forma técnica e física de quando se machucou. Naquele momento em 2019, afirmava-se como jogador diferente no passe, na verticalidade e no bater na bola. Quando se machucou, tinha feito sua melhor atuação individual na vitória sobre o Goiás na Arena, um 3 a 0 em que marcou gol e deu assistência.
No Gre-Nal da Libertadores, embora também tenha criado chances para vencer, o Grêmio foi inferior ao Inter em dois terços do jogo. A expectativa de Renato e da torcida era de que, logo adiante, Jean Pyerre puxaria para cima a produção coletiva do time e então se partiria para a adaptação de Pepê às tarefas defensivas para virar titular. Tudo foi interrompido pela pandemia.
Contando os dias
Deverá haver atraso no acerto do time do Grêmio e na evolução do time do Inter na volta da pandemia. Antes de tudo, os jogadores precisarão recuperar forma física e técnica, tempo indeterminado para que aconteça. Na verdade, terá de ocorrer na retomada do Gauchão, provavelmente em agosto. Se conseguirem cumprir rapidamente esta etapa, Grêmio e Inter voltarão a medir forças para ver quem chega à decisão contra o Caxias. Aliás, o próximo jogo da tabela era mesmo um Gre-Nal no segundo turno. Na lógica, voltariam a se enfrentar para decidir o returno, e daí sairia o adversário do Caxias.
O confronto com o Flamengo na Libertadores, Brasileirão e Copa do Brasil está mais nublado do que os mais cinzas dias de outono. Não há previsão possível nesta hora em que a curva é ascendente do coronavírus no centro do país. Então, a mobilização da volta ao trabalho para Grêmio e Inter estará reduzida, num primeiro momento, à origem da rivalidade entre eles. Vai valer para decidir quem é o melhor entre os dois. Do jeito que estamos todos fora da curva e angustiados por qualquer tostão de normalidade, esta volta ao princípio terá imenso apelo e charme. Estou contando mais do que os dias. E não estou sozinho nesta contagem.
No Santos...
O presidente do Santos errou a mão na redução salarial do elenco e pode pagar preço altíssimo pelo equívoco. José Carlos Peres está espremido pelos compromissos financeiros do clube, como todos os dirigentes dos gigantes do Brasil. O que varia é o tamanho da angústia, o quanto estavam endividados sem pactuação, que potencial de venda de jogadores tinham para aliviar ou zerar o orçamento e que tipo de gestão eram capazes de fazer.
O problema é a falta de diálogo com o grupo de jogadores, que acusam o presidente de ter acertado 30% de corte salarial e depois anunciar de forma unilateral que 30% não seria a redução, e sim o máximo de salário que receberiam pelos próximos três meses. A fratura de uma relação de lealdade desfeita é irreversível. Nenhum jogador vai errar gol de propósito ou correr menos para perder jogo. A questão é o ânimo com que cada um entrará em campo sem ter na direção um parceiro confiável.
Para aquecer o caldeirão, há o óbvio risco de uma corrida à Justiça por parte dos jogadores com grande chance de perda de causa para o clube. Neste caso, o Santos ficaria vulnerável financeiramente num patamar incalculável. E quem administraria o pandemônio já não seria o presidente atual, cujo mandato termina neste ano.