Graduado em Engenharia pela UFRGS e doutorado em Administração pela USP, Jairo Procianoy é professor em programas de governança da Fundação Dom Cabral, além de professor titular da Unisinos e da UFRGS. Também é integrante de vários conselhos de administração de empresas nacionais. Com conhecimento acadêmico e experiência prática, diz que o caso Americanas, que resultou na quarta maior recuperação judicial (RJ) do Brasil, vai resultar em normativas mais restritivas no mercado e no aumento de cuidados nas companhias. Embora afirme ainda não saber o certo o que ocorreu na companhia, faz uma comparação desconcertante:
— Como não ver, ao entrar em casa, que levaram o refrigerador?
Qual será a consequência no mercado e na governança corporativa do caso Americanas?
Quando ocorre um caso como esse, em todas as companhias se passa a tomar mais cuidado, a entrar mais fundo. Nas últimas reuniões de conselho de que participei, todos estavam dispostos a futricar um pouco mais. Outra questão será a dos órgãos reguladores do mercado. A bolsa, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), devem adotar atitudes mais duras. Vão examinar o que aconteceu e fazer normativas para prevenir casos como esse. O problema é que a criatividade humana é infinita.
Foi contabilidade criativa?
Ainda não sei o que aconteceu. Acho que todo mundo que está falando sobre o assunto não sabe o que aconteceu. Os fatos não fecham. Se as dívidas tivesse sido jogadas contra a conta de fornecedores por sete, oito ou nove anos, essa conta teria de ser negativa.
Agora, tem muita gente de cabelo em pé se perguntando porque a auditoria não pegou isso. Há um outro problema que vai cair sobre a auditoria.
Mas não é esse o problema, não estão em conta nenhuma?
Podem ter jogado em outra conta, não se sabe. No lado cinzento da lei, qualquer coisa é possível. Agora, tem muita gente de cabelo em pé se perguntando porque a auditoria não pegou isso.
Qual a responsabilidade da auditoria na detecção de fraude?
Embora a situação seja complexa, como não ver, ao entrar na casa, que levaram o refrigerador? Pode dizer 'não vejo porque não uso', mas como não viu que havia um refrigerador? É grande... É um pouco cedo para fazer juízo de valor, tachar de sacanagem. Seria precipitação. Mas tudo o que está acontecendo é muito estranho. E a companhia ainda não deu informações suficientes para que se possa ter uma noção.
Se a companhia quisesse, a resposta poderia vir antes. Todos os comunicados que a empresa fez até agora são incompletos.
Será preciso esperar o relatório do comitê independente para saber?
Se a companhia quisesse, a resposta poderia vir antes. Acho que a companhia não vai querer, é aquela frase dos filmes, 'tudo o que você disser pode ser usado contra você'. Poderia se autoincriminar. Seria bom se falasse, ajudaria muito o mercado, os stakeholders (todos os públicos relacionados à Americanas). Estamos no meio de uma nuvem, não sabemos se estamos subindo, descendo, indo para a esquerda ou para a direita. Todos os comunicados que a empresa fez até agora são incompletos.
Qual será o impacto do quarto maior pedido de recuperação judicial do Brasil?
Aí existe uma situação curiosa: as três primeiras (Odebrecht, Oi e Samarco) foram levadas à recuperação por motivos externos. O detonador foi um fato externo. No caso da Americanas, a bomba foi detonada por dentro, então já é diferente.
Isso significa que poderia ter tido um desfecho diferente?
Os sócios de referência poderiam ter evitado a crise, aportando recursos na companhia, para não deixar acontecer dessa forma. Não fizeram, e não estão sinalizando que vão fazer. Só querem colocar R$ 6 bilhões. Querem que os outros ajudem a pagar a conta.
Não é ainda mais emblemático que isso tenha ocorrido com um grupo que já foi referência em qualidade de gestão?
Tem pessoas que são modelos em determinada época, por determinado motivo. Se cmeçaram a avançar a linha, deixam de ser modelo. E também a sociedade vai mudando, a
ética vai se aprimorando. Até há poucos anos, todos usávamos canudinho de plástico. Agora, não mais.
Levar o refrigerador não é a mesma coisa que levar dinheiro que está dentro da carteira e dentro da bolsa. Nos dois casos, seria furto, mas são coisas diferentes. Ainda não sabe.
Como o grupo adotava práticas ESG (governança corporativa, social e ambiental), essa crise reforça o discurso de que esse conceito é só "para inglês ver"?
Primeiro, ESG são três letras. A governança é uma. A Fundação Lemann faz coisas fantásticas, conheço bem. Uma falha no G não pode colocar a perder o que se avançou no S e no E. É preciso aprimorar. No caso da Americanas, há responsabilidade também do conselho de administração. Provavelmente não fizeram o que tinham de fazer, com a diligência que deveriam ter, na profundidade que tinham de olhar. Resultou nisso. O conselho tem parte da culpa por omissão ou desleixo, superficialidade. Vai ter de surgir nova regulação, como em todas as crises, como no caso da Enron, que mudou várias regras para o mundo inteiro.
Seria um caso Enron à brasileira?
Não sei o que é esse caso ainda. Levar o refrigerador não é a mesma coisa que levar dinheiro que está dentro da carteira e dentro da bolsa. Nos dois casos, seria furto, mas são coisas diferentes. Ainda não sabe.
Estamos com o assunto ainda muito quente e vai seguir assim até ficar claro, até as pessoas verem com clareza o que ocorreu e as punições chegarem, caso se apliquem.
Outro impacto já ocorre no mercado de crédito privado, que crescia nos últimos anos?
Tanto o mercado de ações quanto o de crédito privado vão sofrer nos primeiros momentos. O lançamento de debêntures (principal títudo de dívida privada, cuja emissão injeta recursos nas empresas, financiando projetos, e vão compor carteiras de fundos de investimento) vai exigir maiores garantias, mais segurança. Isso é normal. Quando somos assaltados na rua, passamos um tempo nos cuidando mais, passa o tempo e voltamos a não cuidar de novo. Estamos com o assunto ainda muito quente e vai seguir assim até ficar claro, até as pessoas verem com clareza o que ocorreu e as punições chegarem, caso se apliquem.
Uma das questões que ficam é quem dá segurança ao minoritário em casos como esse, em que muitas entidades não se posicionaram ainda.
As instituições não falam porque não sabem o que ocorreu, assim como eu. Imagina o risco de uma instituição dizer 'foi fraude' e ser processada pela Americanas por dano de imagem. Até agora, o que se sabe é o que eles mesmo falaram. A companhia deveria cuidar de seus minoritários. Na falta, todos os demais esperam o relatório do comitê. Mas existem associações que dão apoio aos minoritários. Teriam de se juntar, buscar alternativas semelhantes às que existem nos Estados Unidos (como as class actions, ações coletivas de minoritários que costumam cobrar contas bilionárias que empresas que não seguem as regras de mercado).