Um dos livros espanhóis mais vendidos no mundo, La Catedral del Mar, é construído sobre a noção de cidadania na Barcelona da Idade Média: significava ser livre do jugo dos senhores que tinham direito de vida e morte sobre os servos. Nesta semana, o catalão Josep Piqué se torna cidadão de Porto Alegre e acompanha os preparativos para colher um resultado expressivo do Pacto Alegre: a inserção da capital gaúcha nos eventos internacionais de inovação com o South Summit. O consultor da iniciativa diz que, hoje, ser cidadão significa "pertencer", o que faz com que se sinta ainda mais à vontade em Porto Alegre. Na cidade, brincou com a coluna, costuma compartilhar "com dois gatos" um quarto na casa de Jorge Audy, superintendente de Inovação e Desenvolvimento da PUCRS.
Qual a sensação de ser cidadão de Porto Alegre para um catalão, para os quais a cidadania tem peso histórico?
Tecnicamente, só serei na quinta-feira (28, data da entrega do título). É um motivo de satisfação, porque ser cidadão, hoje, significa pertencer, é algo que passa a ser parte da sua vida. Há cidadãos que vivem em mais de uma cidade e, em cada uma, se sentem como em casa, se sentem integrados. Acho que pude contribuir, como mentor do Pacto Alegre, para construir relacionamentos entre as pessoas e ser parte de um projeto coletivo para a cidade. Ser cidadão de Barcelona na Idade Média significa liberar-se do senhor feudal. Hoje, ser livre significa saber que minha vida também está situada nesse território de ações, emoções e projetos. Sou um cidadão de Porto Alegre vivendo em Barcelona, mas sou também um embaixador de Porto Alegre em Barcelona.
Estar em Porto Alegre às vésperas do South Summit Brazil dá sensação de dever cumprido?
Desde a primeira vez em que estive em Porto Alegre, em 13 de outubro de 2015, coleciono 653 fotos da cidade. Tenho clara percepção do quanto evoluiu a cidade que vi e conheci nas primeiras reuniões e a que vai receber o South Summit. Isso se deve muito ao Pacto Alegre, que deu à cidade um projeto coletivo, autorreconhecimento e autoconfiança. Uma cidade não é apenas um território onde vive um conjunto de pessoas no mesmo espaço físico, cada uma em sua casa. Com o Pacto, foi possível ter uma visão comum e um projeto de uma cidade inovadora. O South Summit traduz essa vontade coletiva de avançar para uma visão comum de cidadãos, universidades, empresas. A primeira etapa foi nos reconhecer internamente, reconhecer os ativos de Porto Alegre, de quem faz o quê. Agora, já compartilhamos um futuro comum, imaginado por todos. O Pacto se focou na soma e na multiplicação, não atuamos para diminuir ou dividir. Não houve lógicas de desgaste ou tensão, todos vieram somar, o que é importante em tempos de democracia, porque parece que a divisão é uma macrotendência mundial. Foi uma forma nova de criar uma sociedade que inclui os agentes para um propósito comum. O Pacto é um mecanismo de um projeto de longo prazo, que vai além de um mandato. Permitiu mudança substancial na maturidade do ecossistema de inovação de Porto Alegre.
Qual foi a grande contribuição do Pacto Alegre até agora e qual seu futuro?
Passar de uma ideia de governo para a de governança. O poder público tem de fazer seu papel, mas não consegue avançar sozinho. Por isso os prefeitos reconheceram e aceitaram o Pacto. Criamos mecanismos de memória de governança do coletivo. Se ocorrer alguma troca de prefeito, de reitores, de comando de empresas, o projeto continua. Construímos mecanismos de governança que asseguram que o projeto avance para além do mandato político. Se não fosse assim, ficaríamos circunscritos à lógica do mandato, o que não é suficiente para um projeto de longo prazo. Vamos para a sexta reunião da mesa do Pacto, que ocorre a cada seis meses. Esse exercício de avaliação coletiva dos avanços dá sentido de maturidade, de espírito crítico construtivo. O Pacto construiu pontes e chegou o momento em que Porto Alegre tem de estar na agenda internacional. A visão é tornar a cidade referência na América Latina, o que já está acontecendo. Isso sempre pode ser possível enquanto houver pesquisa, desenvolvimento e universidades que proporcionem talento.
Como atuante no ecossistema da inovação, como vê a compra do Twitter por Elon Musk?
Nesse universo, é preciso educar. Não só para quem escreva o faça de forma coerente, mas para que quem lê possa compreender e ser crítico na leitura. Esse tipo de divisão se produz em muitos países, o que pode dividir a sociedade e chegar a rompê-la. Foi o que ocorreu na França, com 40% que não votaram no vitorioso e que podem ver frustrada a expectativa de mudança que tinham. Democracia não é sempre ver vitoriosa a minha ideia. É o espaço do comum, buscar espaços para buscar um objetivo ainda que com pessoas que votaram em outros partido. A inovação também é um esforço de diplomacia. Atuo em 40 ecossistemas, o que inclui Irã, Rússia, Turquia. Tenho amigos na Rússia. O que devo fazer agora, romper pontes? Não, acredito que é relevante não romper pontes, buscar estabelecer espaços comuns, ou se chega à radicalização, que nasce do medo ao diferente. Em Moscou, há uma situação muito delicada, mas os países tem de seguir adiante, e pontes têm de seguir existindo.
Vê algum risco de aumento da radicalização com a compra do Twitter?
Também sou defensor da liberdade de expressão. Temos liberdade para escutar e para não escutar. É preciso critério na hora de refletir por que as coisas acontecem. O Twitter proporciona, por exemplo, acesso direto às fontes, mas a fonte direta não dá contexto, não faz análise crítica. Então, é sempre importante ter mais de uma fonte de informação, contrastadas com critérios profissionais e adequadamente debatidas.