Há décadas os especialistas em previdência advertem que existe risco de o sistema brasileiro se tornar insustentável. Renato Fragelli, professor da Escola Brasileira de Economia e Finanças da Fundação Getulio Vargas (EPGE-FGV), é um deles. As distorções do sistema previdenciário o exasperam.
Diante da discussão estabelecida sobre a urgência de soluções, afirma que não é mais possível adiar, sob pena de simplesmente não haver dinheiro, mas admite regras de transição, nem tão brandas que adiem o equilíbrio, nem tão duras que impeçam o avanço da mudança.
Por que a situação da previdência no Brasil é tão grave?
No fundo, é uma coisa muito simples. O populismo ficou por muitos anos querendo esconder a verdade. Nossa população, como todas do mundo civilizado, está envelhecendo, com a urbanização começou a haver uma queda na natalidade – eu tenho dois filhos, minha mãe teve quatro, minha avó teve seis –, e além disso eu devo morrer com 90, meus pais morreram com 80 e meus avós, com 70. Então as pessoas vivem mais tempo, e se aposentar com a mesma idade que se aposentavam 50 anos atrás é absolutamente impossível. Não existe isso, esquece. E o Brasil está adiando problema, como é hábito nacional.
De fato, fala-se em reforma da previdência há muito tempo...
É uma discussão que existe, no âmbito dos economistas desde a década de 1980, quando a Constituição de 1988 estava sendo discutida, os economistas já analisavam a evolução do INSS e previam uma situação fiscal temerosa decorrente disso. Estamos falando de mais de 30 anos.
Chegou a hora em que não dá mais para adiar?
Na minha opinião, já não dava para empurrar com barriga há 10 anos. Mas aí veio o boom de commodities, e o Brasil, quando tem uma situação favorável, adia os problemas. É o 'me engana que eu gosto'. A situação fiscal brasileira hoje já é calamitosa e, no caso do sistema previdenciário, tende a se agravar. Já é ruim e vai ficar pior ainda. Sem reforma da previdência, não há chance de ajuste fiscal. E sem ajuste fiscal, a inflação vai voltar a subir, os juros vão voltar a subir, não vai ter investimento e o país vai ficar atolado como estava no governo Dilma. Para sair do atoleiro, o país tem de enfrentar o problema fiscal, e qual é o problema fiscal? O maior é a previdência.
O envelhecimento e redução da natalidade explicam a piora recente dos déficits?
O déficit cresceu tanto porque uma parte muito grande dos aposentados recebe um salário mínimo. O Brasil usa o salário mínimo como benefício previdenciário mínimo, quando deveria ser exatamente o contrário. Uma coisa é balizador do mercado de trabalho, outra é o que se paga ao aposentado. Não deveria ser assim. É sobretudo o pessoal que se aposenta por idade, com pouca contribuição, especialmente no setor rural, além dos que recebem pela Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). Do total das pessoas que recebem do INSS, dois terços recebem exatamente um salário mínimo, as outras recebem acima disso porque contribuíram. Quando o salário mínimo começa a crescer acima da inflação, você pode imaginar que a bomba relógio vai explodir. Esse aumento acelerado dos gastos do INSS veio no bojo do aumento real do salário mínimo, que começou logo depois do Plano Real, em todo o governo FHC, e foi mais aceleradamente no governo Lula. De dois anos para cá, o salário mínimo vem sendo corrigido só pela inflação porque o PIB não cresce. Outra questão que acelerou as despesas foi no ano passado, quando veio a fórmula 85/95. Pessoas que estavam esperando para se aposentar por mais um ou dois anos, para ter benefício no valor integral, passaram a ter direito e anteciparam a aposentadoria.
Se não há mais como adiar, qual é a fórmula para resolver, diante da resistência em relação à idade mínima imediata?
Gosto de pensar no problema da seguinte forma: há uma situação dramática hoje, e o que deveria ser feito para que, daqui a 50 anos, esteja tudo perfeito. Não quer dizer que a gente só tenha de enfrentar o problema em 50 anos. A gente imagina o que seria um conjunto de regras para acabar com distorções gravíssimas.
Quais são as distorções?
Um caso é a despesa com pensões, que é altíssima. No Brasil, existe uma indústria de casamentos de velhos com jovens, senhores de 80 anos se casam com sobrinhas de 22, para deixar a pensão de um salário mínimo. No interior, isso é comuníssimo. Em 2015, naquele ajuste fiscal que a Dilma fez, os técnicos do governo propuseram soluções, parte acabou passando, muito menos do que deveria ser aprovado, e já foi considerado redução de direitos. O Brasil gasta com previdência hoje algo entre 12% a 13% do PIB, e tem apenas 7% da população com mais de 65 anos. Nesse caso, previdência inclui INSS e servidores públicos. Os países que gastam 12% do PIB com previdência têm de 18% a 20% da população com mais de 65 anos. O Brasil ainda é muito jovem para estar gastando tanto nessa rubrica. A gente tem de copiar o que os outros fizeram, não tem mágica. Tem de mudar regra do jogo.
Copiar o que fizeram países mais desenvolvidos é correto?
Uma vez definido um programa sustentável, é preciso definir a regra de transição. Não pode, do dia para a noite, obrigar todo mundo a se aposentar aos 65 anos. Por exemplo, fixa-se idade mínima de 65 anos em 2025. Em 2024 basta 64, em 2023, basta 63, e vai baixando. Agora, não não mexer no problema significa autoengano. Vai ocorrer o que já está havendo no Rio, que está travando o pagamento de salários.
Ocorre o mesmo no Rio Grande do Sul.
Podemos ter o mesmo problema no INSS daqui a pouco. Não adianta prometer uma coisa que não vai ser cumprida. Pode discutir quão rapidamente muda a regra. O Brasil gasta 3% do PIB com pensões, nenhum país gasta tanto. É um problema de distorções. Outra é a diferença de idade entre homens e mulheres, que se aposentam cinco anos antes. Isso foi um galanteio do constituinte. O argumento da dupla jornada perdeu força, hoje há famílias formadas por José e Manuel, Maria e Cláudia.
E como se vencem as resistências?
Um dos argumentos dos sindicalistas é pura desonestidade intelectual. Eles dizem que idade mínima é injusta e concentradora de renda, porque filho de rico faz universidade e começa a trabalhar mais tarde, então precisa trabalhar menos para chegar à idade mínima, enquanto o filho do pobre começa cedo, e aos 50 e poucos não consegue mais trabalhar. O detalhe é o seguinte, esse filho de rico trabalha ao tempo todo com carteira assinada, começou a contribuir com 23 anos, aos 58 pode se aposentar. O filho do pobre, quando chega aos 58, pode ter trabalhado 45, mas só tem 22 de contribuição. Então, já vale a idade mínima para o filho do pobre.
E como tornar a mudança palatável politicamente?
Esse debate tem um lado técnico e um lado político. O governo pede a solução definitiva, o sindicalista diz que não vai acontecer nada. Caso se mantenham as regras em vigor, não serão cumpridas. É preciso definir uma regra do jogo consistente no longo prazo. Fixar idade mínima de 65 anos para homem e mulher, regras mais duras para pensões que não entrem em vigor imediatamente, mas determinado tempo. Se o governo Temer não conseguir passar uma reforma da previdência, significa que ão apoio para fazer ajuste fiscal. E sem ajuste fiscal, a crise volta. Se o governo Temer não conseguir fazer nada, a taxa de juro dispara, o dólar dispara. O mercado está dando trégua, mas pode terminar diante de derrotas terríveis no Congresso. Não imagino que isso vá ocorrer, mas é um risco.