Desde que afundou, o Titanic excita nossa imaginação. São inúmeras as peças de teatro, peças radiofónicas, livros e filmes sobre sua funesta história. Quando um acontecimento ganha múltiplas representações, indica que o fato deixou a história para tornar-se mito. O drama do naufrágio calhou para traduzir ideias opostas ao entusiasmo fabril da época.
Neste caso, um protesto contra o triunfo das máquinas, a aceleração do tempo e a onipotência da tecnologia - como crença de não ter limite em suas possibilidades. É um mito sobre o preço da arrogância, uma lembrança da limitação humana. Em termos gregos seria a hybris, isto é, a desmedida, o orgulho imprudente que atrai a ira dos deuses, e por consequência, sua punição.
Dito, ou inventada posteriormente - o que é mais provável -, paira a frase de que nem Deus afundaria o Titanic. O nome do navio provém de Titãs, entidades descomunais da mitologia grega. Pois, o gigante afundou na primeira viagem. Miticamente, o naufrágio foi lido como punição divina, Deus colocando os homens em seu lugar.
De fato, o Titanic afundou por uma sucessão de erros. Uso de rebites de baixo carbono e chapas de baixa qualidade. Incêndio num depósito de carvão antes da partida. Especula-se que pelo incêndio, o aquecimento desigual dos metais afetou estruturalmente o casco. Para cortar custos, encolheram o número de botes salva-vidas. A tripulação era despreparada e o capitão tomou decisões erradas.
Em 1985 localizaram os restos do naufrágio, então o mito ganhou seu totem. Recentemente, a empresa OceanGate explora viagens de turismo para ver os destroços. Uma visita caríssima, em um submergível minúsculo, com uma escotilha ínfima, que só se justifica na condição de reverência sagrada.
Por ironia do destino, a descida ao símbolo de uma tragédia fruto da negligência, ganância e imprudência; era feita, agora sabemos, por uma empresa negligente, gananciosa e imprudente, que produziu outra tragédia. Semana passada cinco pessoas morreram na implosão do aparelho.
Alertas sobre a segurança foram ignorados pelo CEO da companhia, Stockton Rush, para o negócio não parar. O funcionário responsável pela segurança foi demitido.
Um século depois, Titanic volta às manchetes, para mostrar o preço por negligenciar alertas sobre segurança e de como aprendemos pouco com desastres. Em nossa época, os demitidos da vez são os climatologistas.