“O ser humano cresce mais à sombra que ao sol.” A frase é de Saramago. Como toda frase poética, abre uma janela incerta, evoca um sentido, mas não sabemos qual. Esses tempos, encontrei uma fala da Marieta Severo usando essa frase para referir-se à infância: ela dizia que às crianças hoje lhes falta sombra. Mas do que exatamente ela está falando?
Marieta criticava a presença ostensiva dos adultos na vida dos pequenos. Hoje sabemos que as crianças precisam, além do básico, também do olhar afetivo de seus cuidadores, de ser estimuladas para desenvolver novas habilidades. Este é o óbvio do nosso tempo, o senso comum que ninguém contesta. Aliás, é tão óbvio que é necessário falar de seus excessos. Hoje, é necessário fazer a defesa da sombra.
Não há nada de errado em cuidar e estimular nossos filhos. O problema é quando a onipresença dos adultos, pais inseguros com medo de estar em falta, inibe que eles desenvolvam “a capacidade de estarem sós”. O psicanalista Winnicott é quem melhor nos explica e defende essa habilidade. Ela começa com o bebê brincando na presença da mãe, ou da pessoa que ocupa esse lugar, mas sem convocá-la, distraindo-se dela cada vez mais. Dá para medir o desenvolvimento normal das crianças pelos ganhos de autonomia frente aos cuidadores. Especialmente pela capacidade de brincarem sozinhos, de estarem entretidos consigo mesmos, imersos nas fantasias que acompanham esse afazer.
Há algo ansioso quando uma criança requer o olhar dos adultos o tempo todo. Provavelmente o problema não está nela e sim nos cuidadores que não lhe transmitiram a sombra. Em outras palavras, uma criança deve sentir que é amada e cuidada, mas também é um alívio para ela que seus pais tenham outros interesses que não ela. Já pensou o estresse de nunca sair debaixo dos holofotes?
O excesso de estimulação deixa a criança hiperativa – algo que não é visto a princípio como um problema – com dificuldade para parar e dormir. Ela entende que precisa estar em performance permanente para seus adultos, portanto, convoca-os o tempo inteiro. Ela não é capaz de ficar só, nunca sai de cena para garantir seu público, pois só se sente existindo na presença do olhar do outro. Ela não teve a acolhida da sombra, em cujo abrigo teria aprendido a estar consigo mesma.
Marieta se refere à infância dela, parecida com a minha. Nossos pais hoje seriam considerados ausentes, mas em contrapartida tínhamos muito mais sombra. Aprendemos a existir na própria companhia. Sem isso, é difícil estudar, fazer leituras profundas, entregar-se às divagações de onde brota a criatividade, nem há como escutar nosso monólogo interior, que diz quem somos e o que sentimos. Sem solitude não há riqueza interior nem sabedoria, a vida tende a exaurir-se no exaustivo palco iluminado dos likes.