O homem comum não tinha vez na mitologia e na literatura antiga. As histórias falavam de deuses, monstros, heróis, profetas, reis e rainhas, o personagem comum era apenas figurante. Foi um aprendizado para que ele soubesse seu lugar desimportante na ordem do cosmos.
Apenas quando o romance chegou, enquanto estilo literário, é que o homem médio achou sua representação e que uma vida comum fosse digna de ser contada. Mas não é um momento isolado, depois do renascimento, surgiu uma outra forma de se conceber como sujeito. É o lento nascimento do individualismo. O homem já não é mais totalmente marcado pelo nascimento e ele pode escolher uma vida a seguir. Isso é uma conquista árdua, gradual. Hoje vivemos o ápice de uma forma social individualista.
O que não é fácil, pois cada um tem que inventar uma vida e uma identidade para si. Antes, o homem médio sabia seu lugar e vivia a seguir as elites. Imitava a vida da corte, a dos homens santos. Havia elites que balizavam as identificações, que diziam como era para ser, se vestir, quais valores seguir. E dentro de casa, em caso de dúvida, os mais velhos eram consultados.
Com o passar do tempo, o homem médio empoderou-se, passou a escolher que elites seguir. Num movimento duplo, durante o século 20, caiu o respeito aos mais velhos como fonte de sabedoria. Não sem razão: a história se acelerou e alguns não acompanham.
O homem médio está duplamente órfão de referências e se sente bem assim. Não aceita a hierarquia da idade, nem aceita as elites tradicionais, e agora ele é antielite, qualquer elite, agora é a vez dele. Ele buscará nos seus pares, nos outros homens comuns, uma maneira de ser.
O BBB é o espetáculo ideal para o homem comum. Pessoas sem nada de especial podem se tornar famosas. Vieram do anonimato, não dominam necessariamente um tema e têm opinião sobre tudo. Eles serão famosos por serem muito conhecidos, não há necessariamente algo atrás.
A ciência é uma elite. Por que o homem comum, inchado narcisicamente, iria respeitar essa forma de organizar o saber? Ele vai procurar outros comuns, como ele, que traduzam para seu nível de (in)compreensão, os mistérios da vida. Ele não está aqui para ser “manipulado” e “conduzido” por elites que lhe trazem notícias desagradáveis, ou sobre como se portar em uma pandemia, ou sobre aquecimento global.
As pessoas falam do momento de desinformação como produzido por sites alucinados, que produzem delírios e os vendem como informação. Isso existe, mas não é causa, é sintoma do mesmo: o homem comum não se dobra aos saberes tradicionais, ele tem o saber. Agora é a vez dele de desenhar a narrativa de como o mundo é. Ele não quer saber de sabichões de jornais, de cientistas e sua fala complexa, ele quer seus coetâneos que estão no YouTube ensinando o certo que lhe convém.