Explicar o sucesso da série Guerra dos Tronos requer o mesmo número de páginas dessa obra enciclopédica. Vou pinçar uma das razões pelas quais essa história cativou tanto público: a violência maiúscula e onipresente do começo ao fim. Não há trégua para as mortes, torturas, decapitações, mutilações, estupros, castrações, assassinatos – inclusive de crianças. É uma série em que o mal impera e escancara suas possibilidades.
Falaria alegoricamente do nosso tempo? O senso comum pensa o século 20, e o começo do nosso, como épocas bestiais. Afinal, tivemos duas guerras mundiais, bomba atômica, genocídios, totalitarismos brutais. Porém, se examinarmos dados sobre o conjunto de atos considerados crime, e o total de vítimas, estamos em declínio desde a Idade Média. O mundo está se pacificando. Não parece, mas é assim. Sugiro aos descrentes um livro de Steven Pinker: Os Anjos Bons da Nossa Natureza. Ele analisa o lento declínio da violência como um todo e o paradoxo de não acreditarmos no nosso progresso civilizatório.
O que mudou foi a sensibilidade para com a violência, agora mais aguçada. Hoje qualquer manifestação dela é condenada terminantemente. O problema é que algumas boas almas, não satisfeitas em suprimir a agressividade real, julgam necessário exterminá-la também na virtualidade.
Nossa história foi imersa em violência e ainda estamos impregnados dela. Não sai na primeira lavada.
Para um raciocínio caricatural do politicamente correto, a violência ficcional, virtual, lúdica, onírica, enfim, de qualquer forma, seria igualmente nefasta. O ideal seria extirpar qualquer resquício de maldade. Só assim seríamos virtuosos. Falo dessas pessoas que condenam os videogames violentos, filmes de terror, são contra que as crianças brinquem com armas, como se esses produtos educassem para a violência.
Talvez essa boa vontade do higienismo da agressividade funcione em algum povo venusiano, mas certamente não em humanos. Nossa história foi imersa em violência e ainda estamos impregnados dela. Não sai na primeira lavada. Por sorte, progredimos, mas sonhamos com vinganças, na imaginação destroçamos quem nos atrapalha. É contraproducente negar o que resta em nós de primatas briguentos e nos forçar a parecer com anjos que não somos. A audiência da série é a desforra dessa tolice.
Ficções como Guerra dos Tronos espelham nossa selvageria íntima, como se a tirássemos de dentro para lhe conhecer a cara, ou melhor, as garras. Só depois de olharmos nosso chimpanzé interior nos olhos, podemos domesticá-lo. É o cão que late e não morde.
Enquanto os reinos do escritor George Martin rosnam entre si, nosso lobo essencial uiva suas maldades. Depois de purgadas, esvai-se a vontade de morder os semelhantes. É difícil encontrar fórmulas para diminuir a violência, mas fazer de conta que ela não nos constitui apenas fecha a possibilidade de a arte sublimar parte dela.