Aos sete anos, nosso cachorro Bilbo, um buldogue francês robusto, teve uma convulsão e caiu duro no chão. Não se movia, não respondia a nada. Minhas filhas se desmancharam a chorar sua morte. Quando o desespero ganhou seu apogeu, ele bruscamente ficou em pé e saiu latindo para os cães que passavam em frente da casa, como se nada tivesse acontecido.
Dois veterinários, sem saber um do outro, olhando as radiografias do tórax, proferiram a mesma sentença: os dias estavam contados, talvez semanas de vida. Um coração agigantado oprimia os outros órgãos. Prescreveram uma dieta livre de sal, de gordura e de tudo mais que é bom. Compramos uma ração com gosto de gelatina de chuchu a preço de caviar russo. Bilbo a odiou e fez greve de fome por dias.
O conselho familiar reunido concluiu que, já que a morte era certa, que morresse feliz comendo o que gostava. Assim foi feito e ele viveu por mais oito longos anos comendo uma ração fuleira e gordurosa. Os veterinários não acreditavam no que viam, mas assim foi.
As síncopes seguiam. Várias por ano, mas na terceira ou quarta "morte" já nos habituamos ao Highlander. Em um dia infausto, no Carnaval de 2014, Bilbo morreu para sempre.
Minhas filhas, que aprenderam a andar sozinhas pelas ruas de Porto Alegre na sua companhia, sentiram-se órfãs. O porte dele lhes dava a segurança para o desafio da autonomia. Eu até hoje acordo com a ideia de sair para levar o Bilbo à rua.
Nas primeiras férias sem ele, estávamos na nossa casa no Uruguai na virada do ano. Meia-noite, fomos à praia apreciar os fogos. Um cão grande, de pelo lustroso e escuro, estranhamente insensível ao barulho dos foguetes, grudou no nosso grupo e nos acompanhou todo o tempo. As meninas o batizaram El Negro.
Na volta, nos seguiu até em casa e entrou antes de todos. Deitou onde o Bilbo deitava. Portou-se como se fosse seu lugar desde sempre. Quando as meninas foram dar mais um giro, ele as escoltou no passeio e retornou com elas. No outro dia, desapareceu como surgiu. Os vizinhos não sabiam dele. Ninguém nunca o tinha visto.
Sua aparição, tão empática como fugaz, deixou um rastro de fantasia. Nos enamoramos da ideia de que o Bilbo teria vindo nos fazer uma última visita antes de partir definitivamente para o céu dos cães. Era uma brincadeira, uma história para contar para os amigos. Afinal, cães de rua são dados a se fazer adotar preenchendo nossas carências com seus encantos.
Porém, um detalhe me inquieta. Quando entramos em casa, El Negro foi antes de mim ao lugar secreto no pátio onde escondemos as chaves. É um caminho não usual, um desvio do acesso natural. Como ele antecipou meu movimento?
Será que a experiência de morrer tantas vezes não teria ensinado ao Bilbo um truque extra, de driblar momentaneamente a morte para ver mais uma vez seus amados?