A campanha pela descriminalização do aborto polarizou a Argentina. Os lenços verdes, pró, e os azuis, contra, coloriram dramaticamente as ruas. Agora é a nossa vez. O Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública para instrução do processo que pede a despenalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
É assunto de pegar com pano. Queria examinar um aspecto, uma das facções dos contra o aborto. Consigo entender a posição de quem é pela vida, especialmente os religiosos, sempre quando estes se importem, na prática, por qualquer vida, em qualquer idade. Mas como entender os dispostos a matar pela preservação da vida?
No Chile, três mulheres foram esfaqueadas recentemente numa manifestação por uma legislação mais liberal. Nos EUA, houve várias mortes de pessoas que trabalhavam em clínicas legais pelo aborto, ou seja, que estavam respeitando a legislação. Quem são as pessoas que assassinam pela vida?
Elas lembram um curioso cartaz da época da Guerra do Iraque: "Bombardear pela paz é como transar pela virgindade". Considerando a vida pregressa desses agressores, eles nunca se importaram com vida alguma. Por que se sentem concernidos aos abortos praticados por pessoas das quais eles não têm nenhum vínculo?
Certos assuntos, quando polarizam, são a gota que representa um oceano. O que está em jogo, para esses agressores, não é o aborto, e sim a submissão do corpo feminino e a preservação da imagem idealizada daquela mãe cujo amor nunca vacilaria. A pauta deles é: devolver, o máximo possível, as mulheres para seu "lugar natural". São viúvos do hipotético amor materno incondicional.
O século 20 massificou um movimento surgido no final do 19. A assimetria de poder da balança homem/mulher começou a mover-se para o equilíbrio. Falta muito, mas dificilmente será como antes. Embora não sem tropeços, caminha-se para uma época inédita: homens e mulheres em pé de igualdade.
Os celerados que atacam mulheres e profissionais pró descriminalização do aborto querem o retorno delas à posição subalterna. Eles são a coluna terrorista do ressentimento masculino pela perda de poder, mas especialmente querem equivaler feminilidade a maternidade.
Um dos argumentos que ouço é: se o aborto tivesse sempre sido livre, talvez você não existisse. É verdade. Mas por que a mim, e a tantos, isso não provoca drama? Porque somos seguros desse amor. Quem se afeta pela pergunta e a usa como argumento fala de si. Demonstra seu horror e dúvida de não ter sido querido pela mamãe. Como aquela que me teve poderia não me querer? Cala sua incerteza tentando impedir todas as mulheres de optar. Amor de mãe é lindo, sublime, mas só quando ela quiser e puder.