O pedinte estava na esquina da Osvaldo Aranha com a Venâncio Aires. Ele tinha braços muito curtos. Sei o que lhe ocorreu. Sei a idade que tem. Somos coetâneos.
Não consegui lhe dar nada, pois estava longe, mas gostaria. Tenho uma solidariedade instantânea para com quem sofreu a síndrome da talidomida. Afinal, poderia ser eu. Quem nasceu na virada dos anos 60 correu esse risco. Suzana, minha amiga e vizinha, sofria disso. Lembro bem, brincávamos juntos diariamente.
Não se trata de uma síndrome natural, ela é ocasionada pela ingestão da substância talidomida, um sedativo e remédio para enjoos usado na época. A mãe dela tomou e a minha não. O raio caiu ao lado.
Foi um lançamento apressado da indústria farmacêutica. Produz deformações dos fetos em gestantes. Se insistissem nos testes, saberiam que a substância era perigosa. Simplificando, entre outras coisas, geralmente deforma os membros superiores, atrofiando-os.
Quando penso em heróis, lembro, antes de tudo, de quem chegou ao mundo com uma dificuldade adicional.
Foi o único portador que vi como pedinte. A maior parte das pessoas que sofreram esses efeitos fez suas vidas apesar da limitação. Apenas tiveram que ser mais teimosos e mais bravos do que nós. Quando penso em heróis, lembro, antes de tudo, de quem chegou ao mundo com uma dificuldade adicional. O mundo recém se abre para a acessibilidade, o que é incrível, haja vista as tantas formas que nossos corpos podem assumir.
Mas Suzana e eu não sabíamos nada disso. Tínhamos três anos e aproveitávamos a infância para brincar e ser felizes. Nunca sei se ela se deu conta do que lhe fazia falta. Creio que partiu antes de entender sua condição.
Ir embora não estava nos seus planos, mas Suzana caiu de uma escada. Todas as crianças do mundo já rolaram degraus abaixo. Mas quando faltam braços, com seu reflexo de proteção, a cabeça e o tórax vão sofrer mais. Detalhes me faltam, mas as coisas complicaram e nunca mais a vi. Os braços que quase não tinha abriram-se em asas e a levaram para sempre.
Suzana sumiu sem palavras. Perguntava por ela em vão. Ninguém dizia nada. Na época, acreditavam que o silêncio era a melhor resposta para as crianças quando o assunto era morte. A contragosto, aprendi a brincar sozinho. Entendi minha perda anos depois.
Não acredito que existam lutos totalmente resolvidos, até porque muitas vezes não queremos resolver. O da minha amiga é um desses casos. Mais alguém deve lembrar da Suzana e da pouca sorte que lhe tocou, mas eu não tenho certeza. Portanto, o que posso fazer é não esquecê-la. Por isso, um pedaço de mim, em algum cruzamento do labirinto da minha alma, permanece de luto e mantém uma vela acesa. Talvez isso incremente minha disposição melancólica. Azar, amigos são para essas coisas. Por alguma razão do destino, brincamos juntos e eu testemunhei sua curta existência. Por alguma razão...