* Sociólogo e jornalista
A condenação de Lula mobiliza paixões e são elas que descrevem um mundo onde há só duas possibilidades: ou Lula é uma pobre vítima de um processo maligno ou é um bandido que merece apodrecer na cadeia. O estilo aponta para o tipo de contencioso político no Brasil que se assemelha à guerra. Tenho usado a expressão "emparedamento" para me referir a esse fenômeno que expõe um jogo de soma zero (para a teoria dos jogos, o tipo de disputa em que o ganho de um jogador se alcança, necessariamente, a partir do prejuízo imposto a outro). A imagem literária tenta sintetizar um processo histórico orientado pela asfixia do pensamento.
Esse primeiro processo de Lula teve 334 páginas de alegações finais da acusação e 363 páginas da defesa. A sentença tem 260 páginas; mais outras centenas com laudos, depoimentos, mensagens pelo celular, delações etc. Entretanto, assim que se produziu a notícia da condenação, metade do Brasil "sabia" que Lula era culpado e a outra metade "sabia" que ele era inocente. Vamos combinar que essa reação não é séria e que muitos falam sem ter a menor ideia.
Li com atenção a sentença do juiz Sergio Moro e a primeira impressão dá conta de um espanto. Digo isso a partir da ideia de que a Lava-Jato é fundamental para o Brasil. O magistrado chegou à condenação por conta de uma convicção pessoal, fundamentado em indícios que são frágeis, para dizer o mínimo, e que caberiam em diferentes molduras explicativas. Penso que aqui reside o problema central para o Direito Penal que consiste em saber até que ponto a autoria do delito está provada para além de qualquer dúvida razoável. Em Direito Penal, deve importar pouco o que as coisas parecem. Importa o que se prova. Nessa diferença reside uma conquista civilizatória decisiva. Uma sentença condenatória é a culminância de um processo onde sabemos – o que é diferente de achar – que alguém cometeu a conduta tipificada. Tomemos a denúncia contra Temer: desde a conversa gravada com Joesley até a mala com R$ 500 mil, temos uma narrativa que parece muito clara e, para mim, mais do que suficiente para o impeachment. Sim, mas, em um processo penal, será preciso demonstrar que Rocha Loures negociou a propina a mando de Temer e não por conta própria. No processo de Lula, não há gravações ou malas, e os procuradores lidaram, o tempo inteiro, com indícios. Prova indiciária, como se sabe, prova é, mas qual sua consistência? No caso, se atribui ao réu a aquisição fraudulenta de um apartamento (para lavagem de dinheiro), reformado pela OAS por solicitação do "proprietário de fato". Em que consiste a figura do proprietário de fato que jamais teve a posse do imóvel é coisa para uma nova teoria do Direito. Os indícios apontam que o triplex havia mesmo sido reservado para Lula e a alegada desistência do negócio só ocorre após a prisão de Léo Pinheiro da OAS. Ocorre que o acusado não recebeu nem usou o imóvel que esteve sempre no patrimônio da empreiteira. Para Moro, isso é ocultação de patrimônio, prevista pela Lei da lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98). Então não há prova de que Lula era o proprietário e essa circunstância é prova de que ele ocultou patrimônio. Criativo. A outra parte da condenação foi por corrupção passiva. O encadeamento: Lula teria o imóvel em retribuição por contratos da OAS na Petrobras. Incumbe, assim, ao Ministério Público evidenciar o nexo causal entre um imóvel jamais utilizado pelo acusado e contratos assinados por diretores da Petrobras, não diretamente a ele subordinados. Imaginei que esse nexo estaria evidenciado na sentença, mas ele repousa apenas na delação. Há uma lógica aparente que atribui sentido aos fatos, mas parecer não é o mesmo que saber e probabilidade é diverso de prova para além de qualquer dúvida razoável.
No Estado de Direito, dúvidas do tipo se resolvem pelo Poder Judiciário, assegurado o duplo grau de jurisdição. Uma conclusão que, infelizmente, não é compartilhada por todos os que se dizem democratas. A opinião que se tenha sobre Lula não tem qualquer importância na discussão sobre a sentença, mas a opinião que temos sobre condenações criminais sem prova robusta diz mais sobre cada um de nós do que sobre Lula.
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