A democracia é uma ideia complexa e pouco compreendida entre nós. Ela pressupõe um regramento abstrato, por sobre os conteúdos em disputa, cuja existência visa a impedir que as diferenças sejam suprimidas pela violência. A noção compreende, por um lado, tolerância diante de opiniões conflitantes, mas também limites para a manifestação dessas diferenças. Há quem imagine que democracia seja o regime no qual as pessoas são livres para dizerem o que pensam, o que só pode ser aceito como verdadeiro quando lembramos que dessa liberdade decorre a responsabilidade pelo que se diz no espaço público. Em uma democracia, é possível que alguém, por exemplo, chame um negro de "macaco"? Sem dúvida, eu diria, contanto que o autor seja condenado criminalmente. A lei brasileira, corretamente, entende que, além do crime de racismo (Lei nº 7.716/1989), que envolve o ato de impedir que alguém exerça determinado direito por conta de sua cor ou característica "racial", há o crime de injúria racial (artigo 140, § 3º, do CP), que consiste em ofender a honra de alguém usando elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem. Alguém entende que a penalização por injúria racista seja uma manifestação do "politicamente correto"?
A pergunta procede, porque está se tornando habitual que as manifestações racistas, homofóbicas e misóginas, para citar apenas algumas das variáveis do ódio, sejam consideradas "reações" ao politicamente correto. A tese hilária termina por sugerir um potencial libertador à imbecilidade e transforma sujeitos como Trump ou Bolsonaro em "homens corajosos", porta-vozes do valoroso cidadão comum, atormentado pelas exigências moralistas e pela "patrulha ideológica". Para esse discurso, o fato de os americanos terem eleito um presidente que responde a dezenas de processos judiciais, que pretende expulsar do país milhões de imigrantes e que já foi condenado por práticas racistas, é uma "vitória da democracia". Diriam o mesmo das eleições de 1932, na Alemanha, que deram ao Partido Nazista a maior bancada no parlamento. O pressuposto dessa visão a respeito do que seja a democracia é o princípio ingênuo de que uma decisão será democrática se expressar a vontade da maioria. Em verdade, a democracia é o regime que nos protege da maioria. Não por acaso, as democracias contemporâneas possuem, em suas Constituições, as chamadas "cláusulas pétreas", que assinalam garantias fundamentais insuscetíveis de reforma. Só por isso, não haverá lei que introduza a tortura no Brasil, por exemplo, ou pena de morte. Ainda que a maioria dos brasileiros estivesse de acordo, que os senhores deputados e senadores aprovassem projetos do tipo e o Executivo os sancionasse, tais matérias seriam consideradas inconstitucionais pelo Poder Judiciário.
Para introduzir leis que violassem direitos fundamentais, é preciso uma ditadura. Qualquer uma, como as muitas que o Brasil já teve; como aquela que os senhores e senhoras que invadiram o plenário da Câmara dos Deputados na última semana pediram. O parlamento é o poder que expressa a diversidade político-ideológica em uma democracia. Ocupar o plenário de um parlamento, impedindo a realização de uma sessão, é um atentado à democracia. Solicitar um golpe militar e dizer, como um dos manifestantes, que "o Congresso está implantando o comunismo", não deve ser confundido com burrice. Estamos diante de um delírio cujo movimento pode construir uma das mais sérias ameaças à jovem democracia brasileira se encarnado em uma candidatura presidencial.
Nesse momento, a defesa da democracia e de sua principal instituição, o parlamento, exige que o golpe verdadeiro, agora materializado nas manobras em favor da anistia ao "caixa 2", seja denunciado. Sim, o parlamento precisa ser defendido inclusive diante dos deputados dispostos a destruí-lo com essa proposta. Ao que tudo indica, governo e oposição, o atual e o antigo governo, estão unidos na "operação abafa", resposta bandida à Lava-Jato e às delações da Odebrecht. É preciso uma forte reação da sociedade civil e da imprensa. A democracia o exige.
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