Na noite de domingo, quando a magnitude da catástrofe tomava forma, ingressei por terra no Rio Grande do Sul. Tive uma sensação de volta aos tempos de correspondente de guerra ao constatar que, pela Freeway, seguiam para Porto Alegre comboios rebocando lanchas, jet skis, água e mantimentos. No sentido oposto, milhares de luzes de automóveis anunciavam o abandono em massa da Capital. Pela primeira vez em décadas, revivi minha definição de zona conflagrada: é aquela em que alguns poucos querem entrar, e de onde muitos querem sair. A chegada a Porto Alegre dispensa placas de sinalização. Sabe-se que se está na cidade pelo som de sirenes e helicópteros.
Como em toda guerra, esta revela o que há de melhor e pior no ser humano. No nível máximo da má índole, numa categoria abjeta, estão assaltantes, ladrões, abusadores e saqueadores que invadem casas e lojas vazias. Seguem-se espertalhões que aplicam golpes e os que buscam de forma sórdida lucros milionários se aproveitando da desgraça alheia.
Em outro compêndio, o da cretinice, o nível gold vai para alguns políticos e seguidores que se valem do infortúnio para exploração eleitoral. Numa tragédia dentro da tragédia, eles se empenham em aprofundar a polarização que consome o país. Como as esferas federal, estadual e a municipal de Porto Alegre são lideradas por dirigentes de três campos diferentes, os mais torpes estimulam hostilidades indecorosas neste momento - não por culpa de Lula, Eduardo Leite e Sebastião Mello, ressalve-se. Embora no futuro deva-se esquadrinhar a atuação de cada um antes, durante e depois do cataclismo, os três têm se desdobrado à altura dos grandes líderes em momentos de crise. Os que tentam pôr fogo no circo em meio à devastação, aliás, deveriam se mirar no exemplo de governadores que, independentemente de cor política, não vacilaram ao sair em socorro do Rio Grande do Sul.
Já na categoria da baixeza, o nível mais alto está reservado aos criadores de fake news que tentam macular o esforço de enfrentamento da calamidade. Os que tratam de difundi-las são por vezes inocentes úteis a serviço de aproveitadores, mas deveriam ao menos acordar para uma regra primária em gerenciamento de crises: se alguém não quer ou não sabe como ajudar, que pelo menos não atrapalhe.
Na história da Grande Enchente de 2024, os de má índole não passarão de um parênteses de ressalvas. A página que se escreve neste momento é composta majoritariamente por homens e mulheres, servidores civis e militares, voluntários e doadores que estão deixando transbordar o melhor de suas índoles para salvar vidas, amenizar dores e estender a mão para o recomeço. É essa imensidão de gaúchos e brasileiros, e não os poucos com déficit de caráter, que serão lembrados para sempre como símbolos e exemplos para as futuras gerações.