Há quase duas décadas e meia, Zero Hora incumbiu-me de escrever o texto que abriria a cobertura da histórica sessão de impeachment de Fernando Collor na Câmara, em 29 de setembro de 1992. Sentado nas galerias, assisti ao rolo compressor de votos contra Collor e a uma das maiores celebrações já promovidas em plenário. Quando o voto decisivo foi pronunciado, o Congresso reverberou com os urros da multidão no lado de fora.
A comemoração era o ápice de cinco meses de sobressaltos, denúncias, traições e uma tensão política constante que galvanizara o país. O processo tinha sido longo, extenuante e despertara situações quase surreais, como a mirabolante Operação Uruguai, pela qual Collor procurava justificar seu caixa 2 com um empréstimo de uma offshore baseada em Montevidéu. A versão começou a cair por terra quando o então deputado Odacir Klein, membro da CPI que investigava as contas de Collor, soprou-me ao ouvido ao toparmos na embaixada do Brasil:
– O furo está no tabelião.
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Estava. No fim do dia, havia conseguido reunir dezenas de selos notariais e documentos similares aos exibidos por Collor que demonstravam como era simples e barato forjar empréstimos com aparência antiga no Uruguai. Quando a manchete de ZH explodiu em Brasília, o fim de Collor ficou um pouco mais próximo.
Semanas depois, o dia do impeachment não reservaria surpresas. Impopular, com a base destroçada no Congresso, nos derradeiros dias de poder Collor fazia inflamados discursos contra sua destituição, sempre arrematados pela certeza de que o impeachment não vingaria. Ninguém o ouvia mais. O ex-caçador de marajás era, àquela altura, um morto-vivo a assombrar as esperanças que a maioria dos eleitores depositara no primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do regime militar.
No dia da votação na Câmara, havia apenas festa nas ruas de Brasília. No Congresso, dezenas de repórteres setoristas se misturavam a incontáveis enviados especiais e correspondentes estrangeiros para testemunhar o inescapável destino de Collor. Aproximei-me a certo momento do presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, então a figura mais requisitada de Brasília, que dera uma escapada de seu gabinete no meio do dia para fazer um gesto de agrado ao ex-deputado Marcio Moreira Alves. Em 1968, a rejeição da Câmara à licença para processar o então deputado do MDB levara ao fechamento do Congresso e ao AI-5. Caminhamos quase incógnitos até a rampa do Congresso, de onde Ibsen contemplou a multidão reunida contra Collor no gramado em frente. Naquele instante de reverências, Ibsen sabia que em poucas horas iria moldar a história do país, como Marcio Moreira Alves o fizera involuntariamente 24 anos antes.
2016 – Nas ruas, manifestantes expõem visões contrárias sobre o afastamento
De volta para 2016. Nestes últimos dias, percorri os mesmos ambientes de 1992: o Salão Verde, os gabinetes, o cafezinho da Câmara, o Planalto, a vice-presidência. Há um outro sentimento no ar. Brasília vive uma atmosfera poluída por ressentimentos de lado a lado. A corrupção entranhou-se em escala industrial, o aparelhamento do Estado tomou proporções não vistas nem durante o regime militar, o Congresso perdeu qualidade – basta ver quem ocupa o lugar de Ibsen agora. Mais do que tudo, porém, o discurso do ódio germinou em um solo fértil. Há muito mais intolerância e incógnitas à frente do que havia em 1992. A aliança para depor Collor congregava de Lula a Orestes Quércia – ambos, aliás, fotografados por Ricardo Chaves, de ZH, ao chegarem juntos à casa do novo presidente, Itamar Franco, em Brasília. Agora, a partir de domingo haverá um lado perdedor disposto a não aceitar passivamente a derrota.
Collor se declarava vítima de um golpe engendrado por forças poderosas contrariadas pelo seu projeto de modernização do país. O teor do pronunciamento não era muito distinto do de hoje, mas, além da feira de consciências e da ojeriza da presidente ao vice, as semelhanças se extinguem aí: havia então um clima de vamos-que-vamos generalizado, da direita à esquerda, para "varrer os corruptos do poder". As manifestações de rua convergiam no clamor pela saída do ex-governador das Alagoas. Diferentemente de 2016, a imprensa assumira em 1992 a vanguarda das investigações contra Collor, iniciadas com uma bombástica entrevista de seu irmão à Veja e sustentadas por vazamentos quase diários nos jornais de cheques e extratos bancários, além de depoimentos de figuras-chave localizadas por repórteres. Como resultado, o PT de então defendia com ardor o papel do jornalismo na derrocada de Collor. O Ministério Público e a Polícia Federal eram apenas coadjuvantes discretos, e o Supremo Tribunal Federal (STF), um tribunal pouco conhecido. O grande centro das atenções era a CPI do Congresso, que distribuía denúncias por turno e ecoava as investigações de jornais, revistas e TVs.
Hoje, os lados em disputa se engalfinham nas redes sociais, as CPIs se esvaziaram, o MP e a PF comandam as apurações, amparadas por delações premiadas e escoradas em uma Justiça reverenciada nas ruas, enquanto a imprensa praticamente limita-se a reverberar as investigações oficiais, muito à frente de todos, e a esquadrinhar as decisões de um Supremo que assumiu papel central na história do país.
O desfecho do enredo de agora até poderá ser similar ao de 1992, mas a trilha até aqui seguiu por geografias nunca antes percorridas. E as consequências da votação de domingo ainda são uma grande interrogação. De certeza mesmo, só aquela estranha eletricidade no ar de uma Brasília que volta ao epicentro da história.