Na primeira vez que entrei na sala de um psicanalista, sentei-me no divã e fiz um comentário tão tolo que até hoje me envergonha:
– Imagino tudo o que foi dito aqui entre essas quatro paredes...
Ele me olhou como se eu fosse uma criança (pra ele, acho que eu era) e disse:
– Mais importante do que os segredos revelados será tudo o que não foi pronunciado.
Decidi que eu seria esta que fala fala fala, ainda que por escrito, para, transbordando, reter dentro de mim o mais importante: o que jamais seria dito – e descobrir o que é.
Tenho em minha sala um quadro despretensioso, no verso do qual a autora assinou apenas seu sobrenome: “Grauben”. Sei que era já de avançada idade quando começou a pintar. É uma pintura ingênua e pontilhista: um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se senta uma menina com sua boneca. Ou é uma jovem mulher com uma criança. De cada lado dessa mulher há um gato: o preto senta-se a seu lado direito no banco; o branco está no capim do lado esquerdo.
Acho, quando contemplo, que pode ser a psique nas águas turvas do inconsciente; e de cada lado dela aparece isso que somos de bom e mau, livre e prisioneiro, a força da vida e a pulsão da morte.
No quadro, a “pulsão da morte” está mais próxima, sentada no banco do lado direito daquela mulher com a sua reprodução, dela parida, boneca ou criança.
E estende-a um pouco afastada do corpo, como para a mostrar a nós, indagando: qual sou eu?
Certa vez, digitei “peras” em lugar de “perdas”. Quando fui corrigir, achei mais interessante assim. Pois vendo aquelas frutas fora de contexto, perdidas no meio de um campo ermo, as pessoas pensariam: o que foi que ela quis dizer? Todo mundo quer entender o que devia ser apenas sentido e reinventado. E quem sabe começariam a usar sua imaginação: uma das serventias da arte.
E, quando escrevi o jardim dos “adeuses”, me saiu “deuses”. Por que não? Não serão eles a manejar os cordões em que nós, pobres humanos, estamos presos, em nossas aventuras e desventuras, correndo pelos cantos da construção de uma vida que sempre parece inacabada – e por mais difícil que seja, pedimos mais um tempo, um ano, um mês, uma hora, um suspiro?
Hoje falamos tanto em morte, com tanta naturalidade, 100 mil, 20 mil, que o assunto quase perdeu a gravidade, crianças brincando na beira do penhasco. E, quando a noite chega, pode ser feito uma pálpebra baixada, sonho, delírio, transfiguração – ou a voz da mãe chamando, entra que está ficando escuro! Terminamos a construção do dia, da casa da vida. Pode estar fora do esquadro, uma parede abaulada, telhado torto, jardim de pedregulhos (mas delicadas dálias e rosas) e uma escadinha encostada num muro que não separa nada de nada.
É quando entramos no jardim dos deuses. Onde reina a Dona dos Adeuses, a Senhora Morte: muito escrevi sobre ela, muito por ela chorei, quando me esmagou com os saltos cruéis de seus sapatos alados e seus ossos ferozes. Então resolvi, aqui, não falar nela, tão banalizada.
(Só um fingimento, em retalhos.)