Nesses últimos meses, semanas e dias, o acúmulo de denúncias dolorosas e horrorosas de abuso sexual contra crianças e adolescentes (e também jovens adultos) no mundo está crescendo de forma espantosa. Não sei se os casos aumentaram, mas certamente aumentou a coragem de denunciar. Um tsunami de pavor, e os questionamentos que ele traz consigo.
Mesmo que haja alguns delírios ou injustiças, a multidão de casos reais é tão assustadora, que me pergunto: que gente somos? Que pessoas eram e são essas, aquelas? Quem faria isso com uma criança, uma adolescente, um adolescente? Repetidamente, às vezes anos a fio?
E que espírito humilhado, dilacerado, apavorado, levou as vítimas a suportar tais horrores às vezes longo tempo, sem se queixar nem aos pais, aos professores, a algum irmão mais velho ou melhor amigo? O que há conosco, com nossos filhos, netos, conhecidos e mesmo desconhecidos mundo afora – vítimas e criminosos enrolados em laços tão malignos, que nas vítimas abrem feridas muitas vezes incuráveis?
Padres, pastores, diretores, chefes de equipes esportivas, treinadores, professores, ou parentes, inclusive pais ou tios... Que seres pouco humanos têm esse acesso às vítimas e conseguem manter esse terror por anos e anos?
Que sociedades, que famílias, que igrejas, escolas, academias, equipes esportivas foram e são as que abrigam, ou mesmo ajudam pelo silêncio vergonhoso, esses crimes?
Mais do que isso: sabe-se que alguns superiores ou chefes foram alertados pelas vítimas ou pelos seus pais: mesmo assim, pouquíssima coisa transpirou, nada de punições exemplares e clamor público. Minha compreensão é pequena demais para entender que todas as crianças não sejam alertadas em casa, desde sempre, para correr, gritar, fazer escândalo, a qualquer sinal de algo indevido da parte de outras pessoas, sobretudo adultos. Professor, sacerdote, parente, treinador... tanto faz. Autopreservação é a palavra de ordem. E confiança de que alguém virá ajudar. Melhor chamar a atenção para um engano do que se submeter a tal horror.
As vítimas, muitas das quais choram décadas depois do ocorrido ao falar nele, sofreram por ingenuidade, medo, ou falta de ajuda e colo e escuta em casa. Por uma cruel e cômoda omissão do resto, dos outros, de nós, a sociedade e a família?
Essa cumplicidade velha e sólida dos grupos responsáveis construiu essa torre de opróbrio no alto da qual, agora, os culpados deveriam ser expostos e – perdoem os mais compassivos – castrados, ainda que quimicamente. Prisão é pouco. É fácil demais escapar, sobretudo por aqui.
Gente famosa, respeitada, admirada, é objeto de acusações dramáticas, de quem, quando o crime aconteceu, era apenas criança. Foi só uma vez? Dez? Durante alguns anos ou um ano só? Uma hora que seja, meia hora? O estrago na alma, na psique, na confiança, no recato, no respeito por si e pelos outros foi fundamente escavado nessas vítimas. Que sociedades, que famílias, que igrejas, escolas, academias, equipes esportivas foram e são as que abrigam, ou mesmo ajudam pelo silêncio vergonhoso, esses crimes?
Não sei. Sempre, desde que me conheço, escrevi contra qualquer discriminação, e pela dignidade de crianças, adultos, qualquer raça e condição social. Mas neste assunto, confesso, até eu me atrapalho com as palavras: para esses violadores da natureza humana, quero castigo e eterna discriminação.