O genial Claude Lévi-Strauss, que tanto nos esclareceu sobre povos originários da América, observou, há décadas, que os vírus, uma modesta forma de vida, agem mais ou menos como os europeus que conquistaram vastíssimas terras de uns 500 anos para cá: eles se reproduzem explorando aqueles que encontram pela frente, impondo-se agressivamente sobre eles, matando-os para viver.
A analogia tem suas imperfeições, mas tem força e foi evocada agora num belo ensaio de Aparecida Vilaça editado pela Todavia com o nome Morte na Floresta.
O assunto é o que o leitor deduz: sim, o coronavírus está matando indígenas em proporções assustadoras. Mas tanto quanto o novo vírus, outras formas de violência, que muitos de nós, otimistas, imaginavam bloqueadas, voltaram a operar agora, com apoio ou pouco caso do governo federal.
Todas as mortes são dolorosas para alguém; não menos, e talvez mais, seja a morte de um velho indígena. Aparecida Vilaça lembra a observação de Davi Kopenawa: os indígenas não costumam ter livros com o registro de seu passado, com as histórias que expressam e organizam seu modo de ver o mundo e de estar nele. Mas eles têm os velhos, que carregam em si esse tesouro. Quando um morre, morre uma biblioteca.
O ensaio relembra os nexos entre doença e vida coletiva, na perspectiva indígena. Um xamã é sempre alguém da comunidade que por assim dizer disputa o doente com os mortos que querem levá-lo para o outro lado. Ficar com o doente faz parte da mais profunda vivência civilizatória. Agora, com o coronavírus, tudo isso se agrava e rodopia, numa dança macabra.
Os missionários cristãos que atuam no mundo amazônico, e agora nadam a favor da corrente federal, consideram o conjunto das histórias e práticas indígenas como “crenças”, que devem ser substituídas pelo deus único, centralizador, dogmático, que impõe uma dicotomia trivial de bem versus mal ali onde há, ou havia, toda uma longa tradição de matizes.