Na rádio Continental dos anos 70, eu ouvia um samba-rock que começava assim: “Lá no Partenon a rapaziada faz rock”, coisa e tal. Era do Luís Vagner, vulgo “Guitarreiro”, uma figura. (Fui ao oráculo gúgal e vi que a frase toda é “Lá no Partenon a rapaziada faz rock, mas é trópi e tem toque de samba também”. Mistura. Samba-rock.)
Como é que se canta um bairro? Como se narra uma experiência singular, que ocorre num lugar qualquer? “Qualquer” quer dizer não central, sem prestígio óbvio — como faz? Se o cara mora numa rua pequena de cidade empobrecida, digamos a Penny Lane, em Liverpool, como faz? E se for na Caldre e Fião, no Partenon, Porto Alegre, faz de que jeito?
Eu digo: faz como o Paulo Scott em seu mais recente romance, de grande qualidade e futuro certo, Marrom e Amarelo (Alfaguara). Não que o Scott tenha pensado isso que eu falei acima — o que ele faz é contar uma história, uma que precisava ser contada: dois irmãos porto-alegrenses (do Partenon), de mesmo pai e mesma mãe, calharam de ter um a pela mais clara, e outro a pele bem escura (amarelo e marrom, como diz o nome). O mais claro abre o romance participando, em Brasília, de uma comissão nacional para definir critérios de identificação étnica, em função da implementação das cotas ditas raciais; seu irmão de pele escura é treinador de basquete na cidade.
O narrador é o primeiro, e sua visão das coisas tem uma amargura silenciosa mas persistente de quem já viu sofrimento o suficiente — coisas do racismo diário brasileiro, que ele sofre menos que seu irmão, por aquela diferença involuntária. Essas humilhações e o modo como elas são enfrentadas (com silêncio resignado, com dor na alma, com raiva exposta) compõem o cerne do romance, que vive entre 2016, o presente, quando uma sobrinha do narrador é presa numa manifestação em defesa de sem-teto, e 1984, quando o narrador ingressava na universidade e começava a ver coisas para além do bairro e das dores de sempre.
Como outro elemento, há também, de fundo, o abismo que separa nosso presente daqueles anos anteriores à dominação do crime, do tráfico, da violência diária de hoje. A coisa desandou mesmo foi nos anos 90.
Um grande romance, que se lê com a intuição da explosão iminente mas sempre postergada. Um elemento novo e significativo num debate urgente.