Impressão do momento: o filme Vazante, de Daniela Thomas, é um novo marco na nossa conversa sobre a escravidão, no passado, e permanência da dívida social relativa à escravidão, no presente e no futuro.
Que o digam os intensos debates que estão rolando Brasil afora em torno dele – se o prezado leitor quiser ter uma medida, comece pelo texto de Juliano Gomes (bit.ly/vazantegomes), o primeiro a articular uma tentativa de leitura de conjunto do caso; e leia o texto de Hebe Mattos (bit.ly/vazantemattos), que se refere diretamente ao primeiro. Juliano ataca o filme porque não deu subjetividade aos personagens negros; Hebe defende o filme, matizando essa ausência com firme argumento historiográfico.
O filme é impactante em seus elementos físicos de luz e som: em preto e branco, com uma fotografia sensacional – nada daquele embelezamento oliudiano, nenhum procedimento que atenue as arestas da paisagem física e do ambiente social –, uma trilha sonora fora do comum, planos lentos, cenários crus, ritmo exasperante.
Tudo acontece numa fazenda isolada em que convivem escravos, negros alforriados e brancos mais e menos bem sucedidos; tudo nos vem nas imagens e sons de raro impacto, capazes de repor muito do horror cotidiano que conhecemos, nós brancos das classes confortáveis, só abstratamente.
O filme mete a mão no vespeiro: em 1821, interior de Minas Gerais, um proprietário traz novos escravos, africanos recém-chegados ao Brasil, para sua terra, enquanto sua esposa está parindo. Ela não resiste e morre (desculpa contar isso, mas é nada em relação ao enredo), ele se desespera; busca outra mulher e a encontra numa sobrinha de 12 anos, que ainda nem menstruou.
Enquanto isso, o senhor obriga ao sexo uma escrava (levada num desempenho sensacional de Jai Baptista), que tem um filho meninão, escravo como ela, que vai ser amigo da esposa-menina. Um quarteto amoroso de lados muito desiguais, com desfecho truculento como grande parte da história dos de baixo no Brasil, ontem ou hoje.
O filme abre o debate, não o encerra; ele tem muitos méritos, inclusive o de não querer vingar esteticamente (como Django Unchained, do histrião Tarantino) o horror que a escravidão forjou. E deixa viva a ferida social que representa: não é nada trivial saber como construir narrativamente a subjetividade dos indivíduos escravizados e de seus descendentes.