Meu negócio não é teoria em si. Lembro como eu sofria nas aulas de Filosofia que frequentei, no final dos anos 1970, na UFRGS. Eu me angustiava porque numa hora me parecia que eu estava entendendo a coisa toda, mas logo me faltava fôlego porque havia outro conceito, outra abstração, que se conectava de modo imprescindível ao que estava em pauta, e lá ia a minha atenção pelo ralo, junto com a possibilidade de entender do que estávamos falando. Assim também quando estudava qualquer outra teoria, da literatura, ou na sociologia. Com o tempo, fui descobrindo (e com isso me acalmando) que meu negócio é mesmo a narrativa, quer dizer, algo sempre perto da história, como disciplina, do que de qualquer outra.
Em mais de uma ocasião, porém, me vi esboçando hipóteses de teoria. Nada muito a sério: era mais fruto da longa observação do que de capacidade de abstração mesmo; era coisa para consumo interno. Certo dia, me veio à mente uma imagem que talvez nem seja nada original, mas enfim não lembro de tê-la lido, ou ouvido, antes. Começa com a imagem da crista da onda: é (ou era) comum falar de algo que estava “na crista da onda”, significando algo que está no ponto mais alto e mais móvel e mais visível da onda, portanto da novidade, da nova moda.
Onda, Franco Moretti sacou em estudo sensacional que está no livro A Literatura Vista de Longe (editora Arquipélago), é a imagem certa para descrever o movimento do mercado, que não respeita fronteira nacional: a onda do cinema oliudiano, a onda das ombreiras etc.; já a árvore é a imagem certa para as afiliações nacionais e para a filologia em geral.
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E bem: um dia, já há muitos anos, eu comentava em aula algo sobre o Parnasianismo, assunto da minha dissertação de mestrado, e veio a imagem que punha os Bilac numa crista, como moços da moda nova que vinha de Paris. Eu aproveitei a alusão para dizer que, ao mesmo tempo em que aquela crista espumava lá em cima dando destaque ao poeta flamante, lá embaixo, no pé da onda, estavam outros escritores praticando outras maneiras de fazer literatura.
Tentei buscar até com os raros surfistas das minhas relações uma palavra que designasse precisamente, em jargão, o polo oposto à crista, o pé da onda, a base da onda, mas parece que não existe. Fiquemos com pé, ou base, aquela parte que compõe a mesma onda, em cujo cimo fica o moderno, o novo, o prestigiado, mas em cujo pé fica o antigo, o fenecido, o desprezado. O importante dessa pequena imagem é reter a unidade do fenômeno: para existir a crista, precisa existir a base. E para quem pretender enxergar o movimento todo, para historiar a tensão que aí se realiza, os dois lados precisam ser mencionados, porque ambos devem ter direito à existência discursiva na mesma proporção em que o tiveram à existência empírica.
Um desdobramento óbvio dessa percepção é arguir, mais uma vez e por outro ângulo, a ideia de uma história, em qualquer ramo das artes, que dê palco apenas para o que vai na crista – que afinal nem sempre terá força significativa, ou eventualmente demorará para ter força, ou mesmo nunca a terá, ao passo que o que fica na base poderá ter um sentido e uma penetração marcantes. Se se contar a história da literatura brasileira em 1880 apenas pela crista do parnasianismo, será deixada na beira da estrada a forte presença de outras modalidades de poesia que com ele disputavam a preferência e a dicção daquele tempo. Se se contar a história da literatura em 1950 apenas pela vanguarda concretista, na crista da onda ao lado da construção de Brasília e da Bossa Nova, se perderá de vista o samba-canção, a força da canção de tema rural, assim como a crônica carioca e o romance de costumes, que por esse mesmo tempo se estabilizava. Toda onda tem um pé.