Raízes do Brasil é um monumento, com 80 anos de vida e três gerações de leitores e de comentaristas; logo, a primeira providência ao lê-lo é ter humildade: o livro como um todo é inabarcável, tanto quanto sua fortuna crítica. Ele legou ao debate brasileiro alguns tópicos e imagens, uma das quais ganhou até as manchetes – a consabida ideia do "homem cordial", que seria o brasileiro típico, incapaz ou inapetente para as ações racionais e afeito às reações baseadas no afeto, no coração (cor, cordis: coração, em latim).
O livro de Sérgio Buarque de Holanda, publicado pela primeira vez em 1936, ganhou agora uma ótima edição crítica (Cia. das Letras), em que são anotadas as mudanças do texto ao largo de sua vida, especialmente os impresssionantes acréscimos entre sua primeira edição e a segunda, ocorrida em 1948, e ainda outras alterações posteriores. Os responsáveis pelo trabalho são Maurício Acuña e Marcelo Diego, e os organizadores são Pedro Meira Monteiro e Lilia Moritz Schwarcz.
Uma das marcas que imediatamente convocam a atenção é uma pretensão hoje impensável: um autor relativamente jovem (nasceu em 1902, faleceu em 82) não temeu dizer nada menos que as raízes do Brasil. "Brasil", em si, já é um universo ultracomplexo, no tempo e no espaço; querer enunciar suas supostas raízes, uma vontade perfeitamente descabida. Mas não pareceu isso nem a ele, nem a seus contemporâneos e muitos dos pósteros.
Lido hoje, o livro já requer uma série de modulações e concessões. Quer dizer: passou da condição de ensaio vivo para a de documento de época. Uma das dimensões desse envelhecimento a edição crítica permite avaliar bem: a hoje incômoda vizinhança do texto de 1936 com posições autoritárias e antipopulares, que a edição de 1948 atenuou mas não extinguiu. Um ensaio contido na edição, de Leopoldo Waizbort, observa que o texto é marcado por "nostalgia do Império e crítica à República". Mas não é só.
Antonio Candido, um dos canonizadores, trata o ensaio como um "clássico de nascença" e diz que Sérgio Buarque usa uma "metodologia dos contrários", isto é, caminha mediante tensões que Candido interpreta como matriz de pensamento dialético. Algumas delas: mundo rural x mundo urbano; arcaico x moderno; Portugal x Brasil; Brasil x América hispânica; herança ibérica x a nova influência estadunidense; personalismo português x impessoalidade da Europa ocidental; familismo e patrimonialismo x individualismo e burocracia moderna; cordialidade x civilidade.
Que o ensaio seja dialético, não sei, talvez seja, mas isso não esclarece muita coisa em nossos dias. O texto se apresenta sem especificação clara das conjunturas ou estruturas abordadas, de forma que podemos pular séculos ao passar de uma frase a outra e em vários momentos nos sentimos indiferentes quanto a concordar ou discordar; a análise é animada por uma visão essencialista, em busca de traços da psicologia dos povos, tese insustentável agora, a não ser em conversa de bar.
Acresce que Raízes do Brasil mostra hoje uma precariedade tremenda no aproveitamento do depoimento letrado já existente. Fico em dois exemplos: não cita, simplesmente não menciona a existência de Os sertões, livro que desde 1902 é incontornável para pensar o Brasil, em qualquer dimensão histórica; e cita Machado de Assis como a fina flor de uma literatura absenteísta, que recusou pensar a realidade brasileira. Sérgio Buarque era um crítico literário regular, é bom dizer, desde 1920!
Finalmente, carrega afirmativas em nenhum tempo defensáveis. Um exemplo está no capítulo 6, em que critica os "pedagogos da prosperidade" que vendem a "miragem da alfabetização do povo". Argumenta que isso não é vital para nada, nem para a cultura técnica e capitalista ao estilo USA. E conclui: a alfabetização em massa, "desacompanhada de outros elementos fundamentais da educação, que a completem, é comparável, em certos casos, a uma arma de fogo posta nas mãos de um cego".
O povo não deve ser capacitado para a leitura pura e simples, porque seria como cego dando tiros!
* Luís Augusto Fischer escreve mensalmente no Caderno DOC.