Aos 21 anos, João Peglow encontrou na conflagrada Ucrânia a felicidade que buscava como profissional. O campeão mundial sub-17 em 2019 subiu para o grupo principal do Inter aos 18 anos, fez gol no Brasileirão 2020, jogou Gre-Nal com Abel Braga, mas perdeu espaço. Esteve no Porto B e no Atlético-GO em 2022. Voltou para casa e treinava em separado quando veio o convite do Dnipro. Camisa 10 do time e peleando pelo título com o Shakhtar, Peglow mora na fronteira com a Eslováquia. Longe da guerra, mas sentindo em cada ucraniano os efeitos dela.
Como está a vida na Ucrânia?
Está tranquila, tem sido uma experiência boa. É um país que está vivendo de um modo diferente. Estou gostando da cidade (Uzhhorod, próximo das fronteiras com Eslováquia e Hungria), das pessoas. A língua é bem complicada, assim como o alfabeto (em cirílico), mas temos tradutor do clube. Há outros brasileiros aqui, além dos latinos que falam em espanhol. Conseguimos nos virar bem, tentamos compreender os ucranianos, e eles nos entender. No meio do futebol, a gente se comunica bem.
Quem são os outros brasileiros e esses latinos?
São três brasileiros, dois argentinos e um costarriquenho. Os brasileiros são o Gabriel Gomes, o Rhayner, ex-Atlético-GO, e o Max, goleiro ex-Fortaleza. Os argentinos são o Domingo Blanco e o Purita. O costarriquenho é o Matarrita, lateral da seleção na última Copa.
Como é estar em um país em guerra, mesmo que no lado oposto em que ela ocorre?
Hoje, vivemos na fronteira com a Eslováquia, Uzhhorod está bem afastado do conflito. O clube está aqui porque Dnipropetrovski, onde é sua sede original, foi uma das regiões mais atacadas lá atrás.
E jogar em um país em meio a uma guerra, como é? Como se desenvolve o campeonato?
Hoje, estamos jogando em todos os lugares, à exceção, claro, de Donetstk, Dnipropetrovski. Mas estive em Kiev várias vezes. Também fiz jogos em cidades distantes daqui. Hoje, está mais controlada a situação Na retomada, havia jogos só em Kiev e nas fronteiras com Polônia, Hungria, Eslováquia.
Os estádios seguem com restrições, abrigos antiaéreos e sirenes que anunciam ataques?
Claro, seguimos regras de segurança normais que o país determina. Por conta da guerra, não viajamos de avião, não há aeroporto aberto. Todos os deslocamentos são terrestres. Os mais longos são de trem. Quando é perto, vamos de ônibus. Mas são viagens tranquilas. Quando é de trem, viajamos à noite, ficamos em suítes que acomodam, em camas, até quatro pessoas. Tem todo o conforto. A viagem mais longa durou 18 horas. Até Kiev, foram 15.
Há torcida nos estádios?
Pouquíssima. São 50 pessoas, no máximo, gente vinculada aos clubes, mais convidados. Há casos de pessoas do Exército participando de alguma homenagem. Em jogos da Uefa, era tranquilo, jogávamos fora da Ucrânia, mandamos nossa partida na Eslováquia. Assim, havia torcedor.
Você chegou a ouvir a sirene durante um jogo? Ou ter de correr para o abrigo?
Hoje está mais controlado, sirene quase nunca toca. É bem raro mesmo. Antes de chegar aqui, no primeiro turno, acontecia com mais frequência, tinha de ir para os bunkers, mas era mais por questão de precaução mesmo, não havia risco. Os jogadores esperavam o final da sirene para retomar o jogo.
Como é a sua vida aí, sua rotina? Está com alguém da família?
Estou com meu fisioterapeuta, com quem trabalho faz cinco anos. Ele mora aqui comigo. Treino sempre por volta do meio-dia no clube. Pela manhã ou à tarde, faço um trabalho de complemento em casa. A cidade é pequena, mas bonita, agradável. Saímos muito para ir nas cafeterias, tem muitas aqui, para conhecer alguns lugares. Fico mais em casa, no videogame, converso com os amigos aí do Brasil.
Você tem apenas 21 anos, mas subiu com 17. Podemos dizer que só agora está tendo sequência?
Com certeza. Sempre me senti bem, preparado. Por conta de algumas coisas do futebol, e não é o momento de falar delas, tive pouca sequência. Aqui estou bem tranquilo, tenho a confiança de todos. Estou feliz demais, jogo direto, quase sempre os 90 minutos quando inicio. Isso é muito importante.
Subir muito cedo, quase sem passar pelo sub-20, atrapalhou?
Não procuro pensar nisso, até para não atrapalhar. Sempre tive qualidade para estar onde estive, conquistei esse espaço, fiz por merecer. Por muitos outros fatores, acabou não saindo como queria. Acontece.
Nesses quatro meses na Ucrânia, teve a chance de jogar a Liga Europa. Qual a sensação de estar numa competição dessas?
Ah, cara, foi incrível. Estava em casa, em Porto Alegre, e um mês depois estava em campo jogando uma competição da Uefa. Foi incrível a sensação. Mas é ainda maior a sensação de estar disputando o título ucraniano, para entrar direto na fase de grupos da Liga dos Campeões. Esse é o nosso objetivo. A Liga Europa já foi uma sensação única, imagina a Liga dos Campeões. Foi legal enfrentar outra equipe europeia, desfrutar de um outro tipo de disputa. O jogo rola muito.
Antes de sair, você prorrogou o contrato com o Inter até metade 2024. Qual o plano para junho, no final do empréstimo?
Meu objetivo é ser campeão ucraniano, classificar para a Liga, que é onde queremos estar na próxima temporada. Queremos fazer história, o Dnipro nunca foi campeão nacional. Gosto de estar sempre presente. Estou feliz aqui, meu objetivo é alcançar os planos que traçamos quando cheguei.
Voltar ao Inter depois do empréstimo está nos seus planos?
Como sempre disse, sou colorado, minha família inteira é colorada. Estou bem tranquilo, já realizei meus maiores sonhos: vestir a camisa do Inter e fazer gol no Beira-Rio. Sou muito novo, tenho muito tempo ainda para voltar para casa. Quem sabe com mais experiência ou para encerrar a carreira no futuro. Deus que vai mostrar os caminhos. O fato é que estou feliz.
Aqui estou bem tranquilo, tenho a confiança de todos. Estou feliz demais, jogo direto
JOÃO PEGLOW
Ex-jogador do Inter
Como é lidar com os ucranianos em meio a essa guerra. O que você sente deles?
Criei, em muito pouco tempo, um carinho enorme pelos ucranianos, uma admiração muito grande. Cara, tu não vê um dia em que eles não estejam com sorriso no rosto, brincando. Isso é incrível. Não temos como dimensionar o que eles estão passando e, mesmo assim, estão dando risada, felizes. Gosto muito de analisar as pessoas. Vê-las brincando na praça com seus filhos, por exemplo, sorrindo, é algo que acho incrível. Não sabemos o que se passa com essas pessoas, se perderam familiares, se têm amigos ou parentes na guerra. Mas poder vê-los se divertindo, de poder interagir com alegria com eles é algo que me impressiona.