Gilson Sbeghen, 53 anos, tem fala mansa e pensa antes de cada frase no que vai dizer. Afinal, calma e prudência são características com valor de ouro na Chapecoense. Lanterna do Brasileirão, uma vitória em 24 rodadas, o clube parece condenado ao rebaixamento.
O que é encarado sem medo por Gílson, um contador que se divide entre a gestão de escritório, emprego de mais de 30 anos numa concessionária de uma rede gaúcha e o cargo de presidente da Chape, um clube ainda abalado pelas tragédias recentes, com a perda de ídolos, amigos e cérebros que o fizeram sair da Série D ao cenário continental em menos de uma década. Por telefone, a coluna conversou com Gilson. Reparem na transparência com que trata os números.
Qual o tamanho da dificuldade da Chapecoense neste ambiente da Série A?
Principalmente, pela situação da pandemia, não tínhamos no nosso planejamento voltar neste ano para a Série A. Como os resultados apareceram, chegamos, novamente. Foi um ano atípico, a pandemia atrapalhou muitas situações, tanto financeira quando de presença de público. Sabíamos das dificuldades que enfrentaríamos em 2021. Nosso orçamento é o menor de todos os clubes. Não tínhamos essa capacidade de investimento.
Quantos anos o clube planejava ficar na Série B para fazer essa reestruturação e voltar mais sólido?
Dois anos seria o ideal. Mas, como falei antes, o ano passado foi atípico em todos os sentidos. Era difícil fazer qualquer projeção. Acabamos como campeões da Série B, foi além da nossa expectativa, com gol no último lance do campeonato, algo extraordinário.
O senhor falou do orçamento e tratou-o como o menor da Série A. Qual o valor?
Em torno de R$ 60 milhões. Nossa equipe custa, por mês, o que um atleta mais bem pago do Flamengo recebe de salário mensal. O que esse jogador ganha, veja bem, paga toda a nossa folha. A diferença entre os clubes nunca esteve tão grande. Temo que isso se acentue nos próximos anos. É uma reflexão que precisamos fazer no futebol brasileiro. Não podemos virar a Espanha, em que dois clubes dominavam tudo (até 2015, Barça e Real dividiam 50% da receita de TV e os outros 18 clubes, os 50% restantes). Aqui, sempre teve equilíbrio.
O senhor percebe diferença entre este ano e o período anterior em que a Chape esteve na elite?
Ficamos de 2014 a 2019 na Série A, foram seis anos. Nunca chegamos a ter tantas dificuldades como neste ano. Por tudo que o clube vivenciou e pela própria pandemia, está sendo o mais difícil.
Cria-se um ciclo vicioso, já que o mercado fica restrito para o clube na hora de se reforçar.
Além de orçamento menor, às vezes tem a questão geográfica que vira obstáculo. Há atletas que não querem vir para cidade do Interior, como Chapecó. Aliás, nós, aqui do Sul, temos essa dificuldade. O jogador prefere um lugar de praia, mais quente. Atrasamos direitos de imagem em 2020, por causa da pandemia. Quando começa a atrasar, há também obrigações com empresários que ficam pendentes. Isso faz com que fique restrito nas escolhas, esses agentes recuam no mercado. Também tivemos de colocar um teto salarial, para não extrapolar o orçamento. Não há garantia de que permanecerá na elite (mesmo montando time forte). Se cair, você não recebe nada. Esse modelo adotado, em que o time rebaixado fica sem receber qualquer valor, é complicado. É esse o momento em que mais se precisa de ajuda. Enfim, não pode contar com essa premiação que a CBF dá até o 16º lugar. Por isso, nem colocamos no orçamento de 2021.
O senhor falou da folha ser paga com um salário top do Flamengo. Qual o valor dela?
Entre atletas e toda a estrutura do futebol, falo do valor bruto, fica em cerca de R$ 2,2 milhões mensais. Imagina que, neste mês de agosto, recebemos 30% do valor da TV em comparação ao que tínhamos embolsado no mês anterior. Há uma variação pela exposição do clube nas telas, no nosso caso, afeta na receita global. Por exemplo: esse jogo do Inter, às 11h, será interessante para nós. Como não há outros jogos no horário, terá boa audiência.
O clube, além dos efeitos emocionais, pela perda que teve de pessoas queridas, ainda sofre com os efeitos do acidente em suas finanças?
Temos os acordos com famílias, formalizados no início de 2018 e 2019. Levaremos 10 anos para pagar. Hoje, nos consome R$ 460 mil por mês. É um valor considerável para um clube com o nosso orçamento. Mas é uma responsabilidade que a Chapecoense está assumindo. Embora ainda lutemos por justiça, assim como todos os familiares. Temos ações contra o governo boliviano, contra o governo colombiano, a extinta companhia aérea e seguradoras. Pelo menos, queremos que assumam a responsabilidade, assim como a Chape assumiu e não deixou as famílias desassistidas. Ainda temos alguns familiares que não quiseram formalizar o acordo. Ainda há ações correndo, são em torno de seis ou sete.
Existe possibilidade de novos acordos, portanto?
Não pudemos fazer novos acordos pela nossa questão financeira. Chegamos perto de negociar em alguns casos, mas não dá para assumir parcelas muito altas. Atrasou, recebe multa violenta, vêm execuções. A nossa prioridade número 1 aqui no clube é pagar as famílias. Além disso, ficamos com um passivo grande de 2019, quando caímos na Série A. O clube começou aquele ano com orçamento irreal, se tentou buscar receita e não se conseguiu. Foi muito arriscado o plano naquele ano. Você investe pesado pensando em ficar na Série A e não há garantia. Veja o Grêmio, com todo o investimento, está penando no Z-4. Futebol não é ciência exata.
O senhor usa esta temporada para preparar o clube e o grupo visando ao 2022?
Não podemos, de forma alguma, dizer que deixamos de lutar pela permanência. Claro que é difícil (seguir na Série A). O nosso planejamento é de um cenário mais difícil do que positivo. Você trabalha com os dois, já pensando no pior. Vamos alinhando para não deixar dívidas a serem pagas em 2022.
A Chape passou, nos últimos quatro anos, por perdas pesadas, de jogadores, funcionários, amigos. No acidente, se foram dirigentes que eram as cabeças do clube. Agora, na virada do ano, o clube perde seu presidente, por covid. O quanto isso abala uma instituição?
Perdemos cérebros do clube, as pessoas que estavam no processo já tinham experiência. Além de perder funcionários e atletas. Não tem paralelo no mundo e espero que nunca tenha. Tudo foi recomeçado do zero em todos os sentidos. E com toda essa dor da perda dos amigos. Interinamente, assumiu o Maninho. Fizemos eleição, e ele assumiu por dois anos. O Maninho se licenciou, e o Paulo Magro, que era o vice de administração e finanças, assumiu, conforme manda o estatuto. O mandato era até o final de 2020, mas costurou-se acordo no Conselho para ampliá-lo por mais um ano, pela pandemia. Mas, no final do ano, tivemos a perda do Paulo Magro, por covid. Eu assumi por ser o vice de administração e finanças.
O Paulo Magro fazia um trabalho de reestruturação e, também, de retomar a união entre as correntes do clube.
Sim, o Paulo estava retomando essa situação. Somos voluntários, da comunidade. Porém, o clube necessita de uma gestão profissional. Até 60 dias, não tínhamos executivo de futebol, algo comum em todos os clubes da elite. Você se ressente desse profissional. Mas nossa condição financeira não permitia. Você precisa também de um gestor profissional para o clube. Temos nossos afazeres, dificuldades de tempo. Estamos trabalhando e sugerindo para que a nova gestão tenha esse profissional de gestão executiva do clube. Me prontifiquei a seguir, como uma espécie de assessor.
Qual a situação financeira da Chape hoje?
O clube sempre esteve equilibrado, desde quando começou a ascender nas séries menores até chegar à elite. Teve a tragédia, e isso impactou muito. Em 2018, pagamos um preço caro para permanecer na Série A. Em 2019, também gastamos. Nossa dívida saltou, com acordos e pendências. Em dois anos foi a R$ 80 milhões. Não tínhamos nada de dívida, havia até reserva de caixa. O clube já gastou em despesa de auxílio às famílias e indenizações perto de R$ 50 milhões em quase cinco anos. Mas, que fique claro, é nossa obrigação assistir as famílias. Pensamos, agora, em nos reestruturar para voltarmos fortes. Este momento, não deixa de ser uma nova reconstrução do clube.
O quadro social segue ativo?
Perdemos bastante. Deu uma ensaiada de melhora quando conquistamos a Série B, mas logo veio uma nova onda da pandemia em março e caiu novamente. Hoje, temos 6 mil sócios em dia. Houve momentos, lá atrás, que passamos de 20 mil, com os sócios contribuintes que nos auxiliavam de todas partes do mundo. Mas esse número ficou restrito àquele ano seguinte ao acidente.
A saída para a Chape será adotar o formato de SAF previsto na Lei do Clube-Empresa recém sancionada?
Acredito que vá adotar. Inclusive nomeamos uma comissão no Conselho Deliberativo para estudar quais seriam as melhores formas e alternativas, o modelo a ser adotado. Começamos essa discussão. A Chape tem nome forte no Exterior, isso pode atrair investidores e, assim, equalizar a situação. Acho que não só a Chape vai trilhar esse caminho. Isso profissionaliza, o clube fica desprovido de politica e da paixão em sua gestão. O América-MG, por exemplo, está adiantado nisso. Não vejo outras saídas. A liga também deveria sair. Tudo isso vem em prol do futebol. Olha o crescimento que teve o futebol inglês com a Premier League.
Nesse cenário de dificuldades, a base da Chape pode ser uma solução?
Temos um bom trabalho na base. Colocamos atletas da casa no time principal. Contra o Inter, como o Keiller não poderá atuar, nosso goleiro será um garoto de 20 anos, que é muito bom. Temos o Perotti, o Busanello, o Lima e o Ronei no grupo principal, todos da base. Há estudos que apontam a maturação em sete anos de um trabalho de formação. Estamos chegando a esse momento. Temos um jogador sub-17, Tiago Cozer, zagueiro, que está atrai a atenção. É de seleção de base, tem interesse do Exterior nele. Temos certificado de clube formador da CBF, um CT com três campos muito bons. Ainda falta alguma estrutura, como o alojamento, que hoje é fora do CT.