Em um momento no qual os dirigentes brasileiros se movimentam para criar uma liga, nada mais recomendável do que ouvir quem está inserido na mais tecnológica e ousada associação de clubes do mundo. A La Liga, que congrega as 40 camisas das primeira e segunda divisões da Espanha, é o modelo a ser seguido na gestão e na diversidade de negócios. A coluna conversou com Albert Castelló, seu representante no Brasil. Confira:
Qual a visão da La Liga?
Somos uma grande empresa de entretenimento. Não é somente o jogo, mas tudo o que há de entretenimento nos 90 minutos e fora dele. Há infinidade de receitas e possibilidades de monetização, tentamos aproveitar cada uma delas para potencializar os clubes da La Liga. Há as receitas de transmissão e patrocínios, que são padrões, mas há também outro caminho de captação através de diferentes canais de comunicação, como os APPs, as OTTs , jogos online. Temos uma espécie de Netflix de esporte espanhol dentro da La Liga. Isso serve para entender o comportamento do fã com o futebol e com outros esportes. Talvez isso traga outra forma de consumir nossos campeonatos, como fizeram ligas dos EUA, com a NFLpass, a NBApass. Ali na frente, o torcedor poderá contratar a transmissão diretamente conosco.
Há um processo de digitalização na La Liga que faz dela, hoje, uma das mais adiantadas nessa área?
Tem toda uma variedade de produtos gerados. Como ferramentas de uso interno que, entendemos, são de amplo interesse para clubes de futebol estrangeiros e outras ligas. Lançamos ontem a La Liga Tech, empresa criada pela La Liga e que tem portfólio de serviços como produção de conteúdo audiovisual, luta contra a pirataria através de uma série de ferramentas que prometem eliminação de produtos falsificados em lojas online, análise de dados através da ferramenta mediacoach, que, pelas câmeras que colocamos nos jogos temos dados em tempo real de jogadores. Para nossos clubes, isso é disponibilizado de forma democrática. Essa é uma grande solução para outras ligas. Enfim, é um leque grande que não acabaria cedo essa entrevista (risos).
A parte digital é o ponto de maior investimento e crescimento da La Liga?
Ela tem crescido muito e buscamos agir sempre de forma inovadora. Além disso, adotamos as diferentes redes sociais para se conectar com um público cada vez mais jovem. O maior exemplo é o TikTok. Além disso, temos feito parceria com pessoas de outros mercados, como a música, o cinema e até mesmo de outras modalidades esportivas. É dessa forma que nos posicionamos.
A La Liga busca ser a Disney do futebol?
Boa pergunta. Entendemos qual o nosso papel na indústria do entretenimento, em que se concorre com a Netflix, a Disney, a HBO, a NFL, o cinema de bairro e até com a saída para pedalar com os amigos no parque. Toda a ação de lazer é uma concorrente da La Liga. Oferecemos ao fã um momento de lazer. Seja pela TV ou ao vivo no estádio, para nós resta inovar e trazer conteúdo de alta qualidade, colocado das formas mais diferentes. Por isso, por exemplo, nas transmissões, usamos inserções gráficas de dados e enquadramentos diferentes. Posso dizer, sim, que brigamos por esse tempo livre do consumidor.
A La Liga tem escritórios em quantos países, para trabalhar por sua internacionalização?
Aqui no Brasil, não temos legalmente um escritório, tipo pessoa jurídica. Há uma presença física comigo e com meu colega, Daniel Alonso, como delegados. São 45 espalhados pelo mundo. Em alguns países, esses delegados estão dentro de uma estrutura maior, caso de EUA, México, Nigéria, África do Sul, Dubai, Nova Dheli, Xangai e Pequim. Na Europa, temos escritório em Bruxelas e em Londres. São quatro, cinco pessoas em cada estrutura. Apenas na China ela é maior.
Os jogos chegam às TVs de quantos países?
A todos os países do mundo. Os últimos acordos fechados foram com redes da Groenlândia e Mongólia. Parceiros audiovisuais que transmitem os jogos são mais de 80. Muitas vezes, como é comum na África e na América Latina, as redes estão presentes em vários países.
Como proceder em uma Liga que tem clubes associativos e clubes-empresa?
Além de Barça e Real Madrid, temos Osasuña e Athletic Bilbao como associativos. Mas eles têm o mesmo controle dos demais e se submetem às regras de controle, tendo de apresentar orçamento dentro da capacidade de geração de receita. Nenhum clube da La Liga pode oferecer um orçamento sem controle preventivo. Estabelecemos limites de gastos com salários e contratações. O sistema de tributação é o mesmo para todos, com a mesma alíquota de IR. Na lei de 1991, foi permitido àqueles que não tinham dívidas se manter como associações. Agora, tramita uma proposta de lei que vai desobrigar aqueles que entrarem no âmbito profissional a virar S/A, como aconteceu com Leganés e Eibar recentemente, que estavam saneados e, mesmo assim, tiveram de fazer a conversão. Será importante a situação do clube e não seu perfil de administração.
Como funciona esse controle de gastos?
Cada clube tem seu potencial de receita, que está ligado à posição no campeonato, questão de audiência, potencial de patrocínio, matchday, pelos acordos que têm, pelas cifras que movimentaram nas temporadas anteriores e pelo que projetamos. Assim, estabelece-se um limite de despesas que o clube pode ter com salário, bônus, premiações. Tudo que é gasto é considerado. Se ele ultrapassa esse limite, coloca em risco sua estabilidade financeira e deixa de honrar com seus credores, o que afeta a imagem da liga. O plano é evitar que um clube opere no vermelho e tenha de vender jogador para se manter. Venda de atletas, para nós, é receita secundária, pois a saída de atletas tira o brilho da Liga. Decidimos por esse controle em 2013.
Isso fez parte do fim do que se chamou de espanholização, com Barça e Real descolocados dos demais nas receitas de TV?
Houve trabalhos na Espanha no nível legislativo para que a La Liga passasse a negociar de forma única os direitos de transmissões. Real e Barça tinham maior poder de apelo, havia necessidade de mudança, já que os dois ganhavam 12 vezes mais que os demais clubes somados. Com a nova lei, de 2015, a distribuição tem sido mais equilibrada. A distância máxima entre o que ganha mais e o que ganha menos é de 3,5 vezes mais. Clubes como Barça e Real recebem 180 milhões de euros por ano. O clube que menos recebe embolsa entre 40 milhões e 50 milhões de euros. A mudança passou a ser percebida já em 2016, quando os ganhos com direitos de TV da La Liga passaram de 1,6 bi de euros para a casa de 2,1 bi de euros. Por ano.
Que outros negócios fora do futebol a La Liga busca? Há um parque temático em um resort na Catalunha, não?
Esse parque fica no PortAventura World, em Tarragona, na Catalunha. Será um centro de experiências sobre nosso campeonato e os clubes. Temos outros negócios. Em Madri, lançamos com a NBA um centro esportivo que reunirá quadras de basquete e campos de futebol, oferecerá residência para atletas que quiserem se aperfeiçoar. É uma espécie de academia particular, com treinos e aulas. Está à disposição de diferentes clubes e federações que quiserem preparar seus atletas. Lançamos também o La Liga Exibition, que são espaços interativos a serem construídos em diferentes centros comerciais, uma espécie de museu e exposição itinerantes. São pontos de contato com o público. Esperamos trazer ao Brasil em 2022. Temos a La Liga Business School, braço de formação com programas de MBA e pós-graduação nas áreas de marketing esportivo, direito esportivo e metodologia de treinamento. Fora da Espanha, já temos parcerias com diferentes universidades.
Por fim, ouvi um podcast em que você revela que uma exigência da La Liga aos clubes é que as arquibancadas do lado contrário ao das câmeras de TV estejam sempre lotadas.
É uma questão de cuidado com o produto. Se você vai a uma prova de F-1, por exemplo, e vê o circuito vazio, significa que aquela disputa não tem interesse. Se você está trocando de canal e vê um jogo pela La Liga com gramado e jogadores incríveis, mas o estádio está vazio, percebe que não tem interesse por aquele jogo. Muitas vezes, o estádio está cheio, mas parte inferior, que aparece, está vazia, Isso não pode. Chamamos de tiro de câmera e cobramos que esteja sempre lotado esse espaço enquadrado.