O Yorkshire Evening Post desta sexta-feira (16) noticia o entusiasmo de Marcelo Bielsa com a rápida adaptação de Raphinha ao estilo de jogo o Leeds. Na Restinga, o jornal Vitrine, que cobre o cotidiano dos mais de 50 mil moradores do bairro, espera a estreia do seu ilustre personagem nesta segunda-feira (19), contra o Wolverhampton. Para quem acabou recusado na infância por Inter e Grêmio por ser miúdo, construir a improvável ponte Yorkshire-Restinga ensinam que o tamanho, além de não ser documento, está guardado na alma.
A provável estreia do meia-atacante na Premier League, nesta segunda-feira, é também a estreia de uma família inteira. No universo da bola da Restinga, os Belloli são famosos. Boa parte deles ainda mora ali na Terceira Unidade ou na vizinhança dela. O avô, o Italiano (batizado Osmar, mas poucos sabem), foi um volante de qualidade.
Tanto que, em meados dos anos 1960, o Grêmio tentou levá-lo para jogar com Gessy, Milton Kuelle e Joãozinho. Os pais impediram. Futebol, na época, não era futuro, alegaram. O Italiano, assim, criou os quatro filhos encarapitado na boleia do caminhão. Nos fins de semana, batia a bolinha nos campos da Restinga, pelo Monte Castelo.
Os filhos seguiram a cartilha. Todos jogaram no Monte Castelo. Mas também no Cobal, outra camisa pesada da área. Dudu, o terceiro da prole, foi da base do Inter. Dividiu meio-campo com Diogo Rincón.
Rafael era centroavante na várzea. Mas também se saía bem na percussão e enveredou para a música. Integrou o grupo Samba Tri. No final dos anos 1990, Tinga, parceiro de Monte Castelo e amigo de infância, apresentou-lhe a Ronaldinho. A amizade foi imediata, e o craque apadrinhou o Samba Tri.
— Conheci o Raphinha ainda pequeno, sou muito amigo do pai dele, o "Maninho". Me criei com os tios dele. Jogamos uma pelada juntos até hoje — conta Tinga.
Raphinha se criou nesse ambiente, de uma família que respirava futebol e música. Era a sombra do pai nos campos de várzea. Nunca estava sozinho. Yan Sasse, hoje no Coritiba, fazia o mesmo com Luciano Sasse. Os dois, ainda piás, ficavam do lado de fora, à espreita de uma vaguinha.
Rafael se planejou para estar sempre ao lado do filho. Optou por ser músico profissional pela conveniência de ter horários flexíveis e poder acompanhar os filhos. O caçula, Bruno, também virou jogador e hoje atua como volante no Grêmio Prudente-SP. Como a mulher, a psicopedagoga Lisiane, cumpria horário comercial, cabia a ele levar aos treinos e ficar de olho.
Luiz Carlos Farias, 76 anos, fundador do Monte Castelo, foi o primeiro treinador. Seu Farias, como é conhecido em cada canto da Restinga, só não entendia como o guri, que jogava no meio dos maiores na Restinga, era reprovado por Grêmio e Inter por ser franzino. Na lei do campo na Restinga, o fundamental é ter bola no pé.
— Sempre foi magrinho. Até mesmo quando foi para Portugal. Há uns dois anos, vi um jogo dele na TV e me surpreendi. "Olha, o cara botou corpo" — conta Seu Farias.
Raphinha já era adolescente quando percebeu que não haveria vermelho ou azul em seu sonho. Passou um ano no Sporting Sul, clube formador na Zona Sul. Depois, foi para o Porto Alegre, dos Assis Moreira. Só que o clube fechou. O Academia do Morro, que disputava Gauchão de base, o acolheu. Mas ali também as atividades se encerraram.
O tempo já corria contra a essa altura. Aos 16 anos, através de um projeto em Viamão que preparava garotos para testes em São Paulo, uma porta se abriu no Audax, clube do grupo Pão de Açúcar. Raphinha foi e passou. Tudo parecia andar bem. Só que Abílio Diniz vendeu o Pão de Açúcar, e Raphinha teve de voltar para casa.
— Conversávamos de que seria difícil com as avaliações. Os caras perguntariam: "Aos 17 anos, ninguém viu ainda?" — conta Rafael.
Só que os treinadores que o levaram para o teste no Audax já tinham visto. Eles assumiram o Imbituba e o chamaram para o sub-20, na Segundona catarinense. A competição era tiro curto. Ele foi o goleador, com sete gols. O que abriu a porta no Avaí. Aos 17 anos, havia conseguido um clube. No primeiro ano, foi campeão estadual sub-20.
No segundo, goleador com 20 gols. O ex-meia Deco foi conferir o guri e passou a agenciá-lo. Na virada para 2016, Raphinha brilhou na Copa Ipiranga e na Copa São Paulo. Em fevereiro, foi à Europa pegar o passaporte italiano. Nem voltou. Deco orientou-o a se apresentar no Vitória de Guimarães. Começou no time B e, quatro meses depois, estava no principal.
A partir daí, a carreira acelerou. Foram 18 gols na segunda temporada no Vitória de Guimarães e, na metade de 2018, chegou ao Sporting por 6,5 milhões de euros. Um ano depois, o Rennes pagou 21 milhões de euros para levá-lo à França. Raphinha brilhou. Fez dois gols no clássico da Bretanha, contra o Nantes, e ajudou o clube a conquistar inédita vaga na Liga dos Campeões.
Foi tão bem que Marcelo Bielsa, um dos melhores técnicos do mundo, o pediu no Leeds, cidade berço da Revolução Industrial e polo de trabalhadores. Como é a Restinga, a ponta de cá da ponte com o condado de West Yorkshire, construída pelo guri magrinho demais para a Dupla. Raphinha sempre volta à Restinga. Revê os amigos e sempre vai ao projeto social do tio Eduardo, que educa através do futebol.
— A Restinga é fogo! Tem talentos. Quando sai de lá, é pra quebrar tudo mesmo — orgulha-se Tinga.