Os técnicos brasileiros podem torcer o nariz, rebater com críticas, enfim, expor suas dores de cotovelo das mais variadas formas. Mas é fato que Jorge Jesus, 65 anos, provocou uma pororoca no nosso futebol. Gostem ou não nossos treinadores, ele apontou uma outra estrada a ser tomada.
O português nascido em Amadora, na região metropolitana de Lisboa, precisou de cinco meses para tirar o nosso mundo da bola da mesmice. Desafiou padrões, bateu de frente com regras pré-estabelecidas e fez o Flamengo jogar um futebol de cara europeia nos trópicos.
O clube carioca, é verdade, tem os melhores jogadores, conta milionária, CT de primeiro nível, equipamentos de última geração para recuperar os atletas e torcida que move um mundo para ver seu time vencer. Só que tudo isso fica do lado de fora do campo. Só joga se o técnico souber alinhar e fazer com que potencialize quem precisa ser potencializado: o jogador.
Talvez esteja aí o grande segredo de Jorge Jesus, o jogador. Tudo o que faz e pensa está voltado para que ele evolua, renda ao máximo, cresça como atleta e, principalmente, como homem. Nada de paternalismo, nada de passar a mão na cabeça ou concessões.
Em vez desse comportamento comum no futebol brasileiro, a linha de Jesus prima pelo trabalho que vai ao detalhe, pela cobrança, quase sempre enérgica, e pela mentalidade de competição extrema. A cobrança é na hora, seja no treino ou no jogo. Quem conhece o português garante que nunca deixa para depois. Nada de conversa ou reunião no dia seguinte. É ali, no campo. E, ali no campo mesmo, morre.
Bastidores
Houve estranhamento no começo. Antes dos confrontos pelas quartas da Libertadores, dirigentes do Inter tinham informações de que os entreveros entre o técnico e os jogadores se repetiam nos treinos. O que era verdade, pela forma enérgica e direta de Jesus. O que eles não sabiam é que, do seu jeito, ele entrou na cabeça dos atletas.
Fez com que entendessem que só com aquela entrega os resultados viriam. Eles vieram e fizeram sumir arranhões na relação do vestiário. Claro, colaborou o fato de o grupo estar cheio de jogadores com longas passagens na Europa. Eles ajudaram a disseminar no grupo essa mentalidade e fazer àqueles com currículo doméstico entenderem que faz parte do trabalho deixar de fora os melindres.
— Ele fala o que precisa ser dito e não deixa para depois — frisa Baidek.
Zagueiro com cartaz em Portugal, Baidek recebeu convite de Jesus em 1992 para jogar no Amora. Foi o primeiro brasileiro comandado pelo técnico. A convivência durou seis meses, a amizade ficou. Naquela época, era possível ver em Jesus características marcantes hoje, como a obsessão pelo trabalho e a relação profissional, mas afetuosa, com o grupo.
No documentário "Sem Filtro: Flamengo", produzido pela DAZN, é possível perceber isso. No mergulho das câmeras nos bastidores do time, em vários momentos, é possível vê-lo conversando ao pé do ouvido com um ou outro jogador. Ou mostrando na prancheta o que deseja em campo. Ou então junto ao grupo em meio a sessões de musculação. Por vezes, até ele mesmo malhando ao lado deles.
Um dos capítulos do documentário revela nas entrelinhas o que virou a relação do português com o grupo. Entrevistado, o auxiliar João de Deus revela graça e surpresa com a reação dos reservas depois de gols surgidos a partir de uma jogada cantada pelo técnico:
— Aconteceu "n" vezes daqueles que estão no banco virem comemorar comigo e dizer: "O homem disse, o homem disse".
Isso talvez seja a mudança central trazida pelo português. A relação com o jogador não confunde afeto com paternalismo.