Havia um cabeça na inauguração do Beira-Rio, há 50 anos. Aliás, não era um cabeça. Era "O Cabeça". Para ser mais preciso, João Samyr Lopes Boa Nova. É verdade que ele não deu lançamentos para Valdomiro disparar e cruzar com sua "perna de rifle". Tampouco desarmou para que Bráulio, "O Garoto de Ouro", luzisse no meio-campo. Muito menos cruzou para que Claudiomiro irrompesse com a solidez de uma "Bigorna" área adentro. Mas o Cabeça era peça fundamental naquela engrenagem montada por Daltro Menezes e que muitos apontam como o embrião do time multicampeão dos anos 1970. Tão fundamental que no dia 6 de abril, quando o Inter venceu o Benfica de Eusebio, ele estava ali, dentro do campo, vendo a história acontecer a poucos metros dos seus olhos. Ele era um dos gandulas daquele jogo, contemplado por mais de 100 mil colorados no gigante de concreto erguido onde havia um rio.
Aos 14 anos e numa Porto Alegre ainda romântica e civilizada, Cabeça vivia o sonho de qualquer guri colorado. Havia sido adotado pelo grupo de jogadores, andava para cima e para baixo com eles e se sentia mais um do time naqueles derradeiros dias de expediente nos Eucaliptos. Estava tão enfronhado naquele ambiente que jogou um ano no mirim, foi campeão estadual e tudo, mas largou. A convivência com a turma de Daltro Menezes era o que o arrebatava.
Tudo começou a partir de Elton Festenseifer, o Alemão, um volante que havia saído do Grêmio para jogar no Botafogo com Garrincha e Nilton Santos e voltara para reforçar o Inter. Elton morava no IAPI, na entrada do bairro. Cabeça e sua família também, embora umas ruas mais para dentro. Filho de um cruzeirista, ele até havia assistido a alguns jogos com o pai, seu Niége, na Montanha (onde hoje é o Cemitério João XXIII). Só que o coração havia acelerado mesmo pelo Inter.
Aquela era uma época em que jogadores de futebol não viviam em uma redoma criada por agentes e assessores. Agiam como cidadãos comuns. Por isso, Cabeça logo estreitou relações com o ídolo do IAPI. Elton simpatizou com o guri. Convidou-o para ir ver um treino nos Eucaliptos. Depois, outro. E não demorou para que uma rotina se estabelecesse. Cabeça se empoleirava no banco do carona do esportivo Karmanghia vermelho do volante e atravessava Porto Alegre da Plínio Brasil Milano até a Silveiro. Era um orgulho só, braço escorado na janela aberta e ares de sujeito importante. No caminho, Elton ia recolhendo caroneiros, como o volante Tovar, que morava na Vila Sesi, o volante reserva Gilnei, o lateral juvenil Norival e outros. Certo dia, parou no Centro de Porto Alegre para um deles descer. Saiu tanta gente do Karmanghia que os transeuntes se assombraram: como podia caber tantos em um carrão tão pequeno?
Naqueles meses que antecederam à inauguração do Beira-Rio, Cabeça mantinha uma rotina sagrada: passava na casa de Elton, ia para o treino nos Eucaliptos, almoçava com os jogadores e de lá atravessava de novo a cidade para estudar no Colégio Dom Bosco. A convivência fez dele um faz-tudo dos jogadores. Era sua, principalmente, a tarefa de lavar os carrões dos ídolos. A saboneteira vermelha de Dorinho, o fusca com pneus tala larga e rodas de magnésio de Gainete, o Opala vermelho, que Elton comprou depois do Karmanghia, todos brilhavam pelas suas mãos. A simpatia do guri era tamanha que até Gainete, um sujeito de temperamento forte e sempre casmurro, se rendeu.
— Mas foi difícil conquistar o Gainete — sorri hoje o Cabeça, aos 64 anos, aposentado e morador de Torres.
Além da amizade com os jogadores, o destino também ajudou a colocar o guri dentro do Beira-Rio naquele 6 de abril d 1969. O Inter costumava usar os garotos dos cursos do Senai como gandulas. Como o jogo era daquele tamanho e havia a novidade da bola no fosso a ser recolhida, era preciso reforçar o time. O então dirigente Luiz Otávio Pellegrini buscou no mirim mais quatro guris. Claro que um deles era o xodó dos jogadores.
Pode-se dizer que o Cabeça só não fardou e entrou no campo. Na véspera do jogo, ele dormiu com os jogadores do Retiro da Varig, espécie de sede campestre da companhia no Morro do Sabiá, na Zona Sul. Dormir, na verdade, foi meio difícil. A mosquitama e os foguetes que espocavam em Porto Alegre interrompiam o sono. Até que veio a alvorada preparada pelo clube, pouco antes das 7h. Despertos, os jogadores saíram para caminhada na praia de Ipanema. Cabeça, é claro, foi junto.
Pouco depois, os jogadores embarcaram no ônibus da delegação e, seguidos por uma carreata barulhenta, tomaram o caminho do Beira-Rio. Usaram pela primeira vez as instalações novinhas do estádio. O café da manhã e o almoço foram na concentração. Houve tempo até para recostar nas camas recém colocadas no alojamento. Dos janelões de ferro, os jogadores - e o Cabeça - observavam a multidão chegar à nova casa do Inter.
— A preleção do Daltro, eu não assisti. Nem dava né? — sorri Cabeça.
No celular, ele mostra orgulhoso a imagem que está o detalhe ao lado. Mostra um guri estirado junto à bandeira de escanteio da ponta esquerda da goleira do portão 7. É o retrato da tranquilidade numa tarde em que Porto Alegre trepidou. Aos incautos que duvidam da sua eficiência naquela tarde de abril, ele faz questão de explicar:
— Estava deitado por orientação, se ficasse de pé, atrapalharia o pessoa da Coreia.
Numa época em que tirar uma foto era luxo de poucos, Cabeça jamais imaginou que, entre tantas estrelas em campo, um fotógrafo fosse focar nele. Só descobriu quando o livro de edição limitada que o Inter mandou fazer chegou ao Beira-Rio. Os jogadores correram até a Gráfica Ema, ali na Rua Santana, para pegar seu exemplar. Ele foi junto. O dono da gráfica entregou um para cada atleta.
— E o guri? — perguntou um deles.
— Esse eu nem conheço. Quem é?
— É o Cabeça! Olha ele aqui — avisou um dos jogadores, batendo com o indicador na foto.
Hoje, 50 anos, depois, esse exemplar está guardado na casa de Cabeça em Torres, encadernado em capa dura para evitar danos. Um colecionador, nos anos 1990, ofereceu-lhe R$ 3 mil pelo livro. Ele recusou, claro. Não venderia o registro do dia em que participou da inauguração do Beira-Rio. Não jogou, mas era da turma. E, no futebol, só podem jogar 11.