Conselho tutelar. Três escolas públicas. Um centro de atendimento psicossocial. A assistência social. O Ministério Público. Um hospital. A Polícia Civil. Um centro de proteção às crianças vítimas de violência.
O rol acima inclui nada menos do que 10 instituições que tiveram ciência ou fizeram registros de episódios envolvendo a menina Kerollyn Souza Ferreira, de apenas nove anos, e a mãe dela, moradoras de Guaíba. Sublinho o número 10 pra lembrar que houve, no mínimo, 10 chances, 10 instituições públicas que poderiam ter agido para evitar o desfecho trágico na vida daquela criança. Mas não.
O corpo de Kerollyn foi encontrado jogado dentro de um contêiner de lixo, na contramão do direito à proteção à vida estabelecido pelo texto constitucional.
moradores da comunidade onde Kerollyn vivia narram uma sucessão de violências: a menina passava fome, perambulava sozinha pela rua à noite, era agredida pela mãe e se abrigava dentro de um carro abandonado
Escrevo sobre esse aspecto da tragédia porque é angustiante ouvir o relato dos repórteres Letícia Mendes e Ian Tâmbara, na Rádio Gaúcha, de que todo mundo sabia que a menina sofria maus-tratos. Eles contaram que moradores da comunidade onde Kerollyn vivia narram uma sucessão de violências: a menina passava fome, perambulava sozinha pela rua à noite, era agredida pela mãe e se abrigava dentro de um carro abandonado.
Num período de pouco mais de 30 dias, ela esteve quatro vezes no Hospital Regional Nelson Cornetet. Quatro vezes! Os vizinhos dizem que num desses episódios a criança havia sido agredida pela mãe com uma escumadeira na cabeça. O hospital aceitou a versão “queda de uma bicicleta”. Não foi possível desconfiar? É incompreensível que uma rede inteira, incluindo o pai da menina, tenha se omitido.
A promotora Cinara Dutra, uma das maiores autoridades na defesa das crianças e adolescentes do Brasil, afirma, com razão, que esse caso dói no coração de todos nós. E, a mim, dói ainda mais profundamente saber que um dia antes de morrer a menina chorou junto à direção da escola por não ter pai. Ali, com o rosto machucado, ela relatou ter sido agredida pela mãe. Os relatórios sobre essa violência foram entregues às 22h12min do dia seguinte, sexta-feira, dia 9. Àquela altura, Kerollyn já estava morta.
Falhamos gravemente. E não há como voltar atrás.
Para além da punição dos responsáveis, urge a revisão de práticas e protocolos. Para que tragédias como essa não voltem a se repetir.