Cinco meses após a morte de João Alberto Freitas, em uma unidade do Carrefour em Porto Alegre, segue a discussão obre a indenização da viúva Milena Alves. Nesta semana, a defesa divulgou nota cobrando postura da empresa, comparando os valores que constariam na proposta feita à viúva de Beto ao montante pago depois da morte de um cachorro vira-lata por um segurança do Carrefour, em uma unidade em São Paulo.
A defesa de Milena afirma que a indenização proposta pela empresa a ela estaria em torno de R$ 1 milhão; o Carrefour não menciona os valores em discussão.
Em nota que será divulgada nesta sexta-feira (2), o Carrefour afirma que os acordos de indenização pela morte de Beto já foram fechados com todos os demais familiares da vítima, restando somente a definição por parte da viúva. Segundo a empresa, Milena vem "insistindo, por intermédio de seus advogados, no recebimento de valores não razoáveis e fora dos patamares jurisprudenciais, o que tem dificultado o consenso". O Carrefour também se propôs a pagar os honorários dos advogados de Milena.
Os advogados de Milena, contudo, contestam esta versão e afirmam que a "vida de um homem está sendo igualada e nivelada pelos mesmos balizadores que a vida de um cachorro". Eles ressaltam que Beto, um homem negro, foi "brutalmente surrado e assassinado" pelos funcionários da empresa de segurança terceirizada Vector Segurança Patrimonial Ltda.
Vale lembrar que todos os quatro filhos de João Alberto, a enteada e a neta já estão com os ressarcimentos definidos, em negociações finalizadas.
Racismo estrutural
Como a nota da defesa da viúva também menciona o combate ao racismo estrutural no Brasil ("o intuito central no patrocínio desta causa é de que, ao final, a morte do Beto sirva como um divisor de águas", referem os advogados), o Carrefour também respondeu sobre o tema. E lembrou na nota a negociação, junto ao Ministério Público do Rio Grande do Sul, para o pagamento uma indenização por danos morais coletivos, que acontecerá por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
A ideia, segundo a empresa, é estabelecer compromissos e obrigações da parte do Carrefour com a sociedade para a luta contra a discriminação racial no país, "apoiando e investindo em ações que contribuam para a mudança deste triste cenário de racismo que existe hoje no Brasil".
"Desde a morte de João Alberto, o Carrefour assumiu 8 compromissos com mais de 50 iniciativas públicas para o combate à discriminação e inclusão de negros e negras, como forma de contribuir para o enfrentamento do racismo no Brasil", afirma o Carrefour.
Relembre o caso
João Alberto foi morto na noite de 19 de novembro, no hipermercado Carrefour, no bairro Passo D'Areia, na zona norte da Capital. Três seguranças do grupo Vector, empresa terceirizada, e três funcionários do hipermercado são réus por homicídio triplamente qualificado. Além de Giovane, Magno Braz Borges está preso de forma preventiva e Adriana Alves Dutra está em prisão domiciliar. Os demais réus — Paulo Francisco da Silva, Rafael Rezende e Kleiton Silva Santos — estão em liberdade.
Leia a nota completa do Carrefour
"Desde a trágica morte ocorrida em novembro de 2020, o Grupo Carrefour Brasil prestou assistência financeira e psicológica à família de João Alberto Freitas. A família contou com o atendimento de uma assistente social, além de apoio psicológico e financeiro para gastos do dia a dia (supermercados, alugueis, transportes, educação, entre outros). Em paralelo, e adicionalmente a esse suporte emergencial, o Carrefour buscou prontamente celebrar acordos para indenização dos membros da família do João Alberto, 8 dos quais já têm indenizações definidas e, em alguns casos, pagas.
Isso significa que:
- todos os quatro filhos de João Alberto, sua enteada e sua neta já estão com ressarcimentos definidos, em negociações finalizadas. Apenas os três filhos do segundo casamento que aguardam homologação do Ministério Público do Rio Grande do Sul para que o pagamento seja efetuado;
- dentre estes familiares, a filha e a neta do primeiro casamento, bem como a enteada de João Alberto, já tiveram o acordo homologado e receberam o valor pactuado;
- o pai de João Alberto já recebeu o valor acordado; e
- a irmã de João Alberto já recebeu o valor acordado;
O único acordo não finalizado é com a viúva de João Alberto, a senhora Milena Borges Alves, que vem insistindo, por intermédio de seus advogados, no recebimento de valores não razoáveis e fora dos patamares jurisprudenciais, o que tem dificultado o consenso. O Carrefour vem negociando de maneira muito cooperativa para chegar a um acordo final. Inclusive, a filha da senhora Milena (enteada de João Alberto), conforme descrito, também representada pelos mesmos advogados da mãe, já formalizou acordo e recebeu, assim como seus patronos, o valor estipulado.
É importante ressaltar que o valor oferecido pela empresa à senhora Milena por danos morais individuais é bastante superior ao estipulado para indenização por morte de familiar pelo Superior Tribunal de Justiça e também superior ao montante que os seus advogados vem comunicando na mídia. Sem prejuízo, o Carrefour segue firme no propósito de uma composição e se propõe a pagar os honorários dos advogados da senhora Milena, mesmo estando eles acima do padronizado pelo mercado e representando valor relevante.
RESSARCIMENTO À SOCIEDADE
Em paralelo aos acordos com a família, o Carrefour está negociando junto ao Ministério Público do Rio Grande do Sul uma indenização por danos morais coletivos, que acontecerá por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), estabelecendo compromissos e obrigações da empresa com a sociedade para a luta contra o racismo no país, apoiando e investindo em ações que contribuam para a mudança deste triste cenário de racismo que existe hoje no Brasil.
Combater o racismo é um tema que precisa ser prioridade de todos e o Carrefour entende que precisa desempenhar um papel importante neste contexto. Desde a morte de João Alberto, o Carrefour assumiu 8 compromissos com mais de 50 iniciativas públicas para o combate à discriminação e inclusão de negros e negras, como forma de contribuir para o enfrentamento do racismo no Brasil. Para subsidiar estes compromissos, foi criado um Fundo de Diversidade cujos recursos serão destinado a ações de impacto na sociedade, previstas nos compromissos divulgados.
Para acompanhar os compromissos assumidos pelo Carrefour, foi lançado o site Não Vamos Esquecer, que reúne todas as ações e avanços do Carrefour na luta do combate ao racismo."
Leia a nota da defesa da viúva de Beto Freitas
"Quem escreve esta carta são os advogados da ex-companheira do João Alberto Silveira Freitas (Nego Beto) Milena Alves e sua filha, Stephanye, enteada dele e pelo advogado do Sr. João Batista, pai de João Alberto. Aproxima-se a sexta-feira da paixão, onde a morte injusta do Beto traz à tona todas as denúncias contra o poder econômico provindas com a morte de Cristo, queremos prestar contas à sociedade sobre o que andou e o que ainda está em ritmo lento. Queremos justiça!
As elites brasileiras parecem ter um hábito e um prazer mórbido e sadomasoquista secular, de pôr uma pedra sobre o nosso passado de servidão, sofrimento, castigos e holocausto dentro e fora dos navios negreiros. A dor da família do Nego Beto não é diferente dos afro-brasileiros oriundos da mãe África e castigados brutalmente pelos seus senhores brancos. A força que nos permite continuar lutando para que a voz de nosso povo jamais seja amordaçada novamente. Caro leitor, vale lembrar que o Brasil é o país com a maior população negra fora da África - 56,2% - afro-brasileiros (negros e pardos).
Apoiamos integralmente a busca de indenização contra o Carrefour, por parte da sociedade. Entendemos que essa morte feriu todo o povo afro-brasileiro e não pode ficar sem uma punição à altura, para fazer mudar a cultura das empresas e do poder econômico brasileiro, em relação ao povo afro-brasileiro.
Primeiro, cabe relembrar que Beto, homem negro, foi brutalmente surrado e assassinado na noite do dia 19/11/2020, às vésperas do Dia da Consciência Negra, dentro de Hipermercado Carrefour pelos funcionários da empresa de segurança terceirizada Vector Segurança Patrimonial Ltda. Uma sequência infindável de socos, pontapés e asfixia despendidos por causa da sua cor o levaram a morte no local. Tudo isso, foi acompanhado pelos olhares incrédulos da Milena, impedida de prestar socorro pelos demais funcionários que presenciavam o ocorrido. No próximo dia 19 de abril, completaremos seis meses dessa tortura e barbárie.
O intuito central no patrocínio desta causa, além dos interesses da família, no caso, Milena, Stephanye e sogros, é de que, ao final, a morte do Beto sirva como um divisor de águas, ampliando a consciência e o combate ao RACISMO ESTRUTURAL.
Passados alguns meses desde a morte dele, após algumas reuniões com o corpo jurídico do Carrefour, sentimo-nos conquistando pouco avanços, lutando contra um sistema engessado, que além de ser voltado para os poderosos, é racista, hipócrita e capitalista. Vale lembrar que nesse sistema capitalista, o Carrefour S/A comprou Big por R$ 7,5 bilhões. Com a transação, o conglomerado passa a responder por um faturamento de R$ 100 bilhões, somando os R$ 74,9 bilhões do Carrefour, no ano de 2020, com R$ 24,9 bilhões do Big. Fica aqui uma pergunta para os acionistas dessa operação. Quanto vale a vida de um Afro-brasileiro?
Cabe ressaltar que, caso Nego Beto fosse um indivíduo caucasiano, de pele branca e olhos claros, não negro, não pobre e não excluído, como de fato era, estaria vivo e jamais teria sofrido uma morte destas: covarde, violenta e brutal.
O racismo, em especial no Brasil, é uma realidade viva, não uma ficção ou um tema filosófico ou de “esquerda”. Milhares de pessoas negras morrem apenas pela sua cor de pele, porque o policial “achou” que o menino ia sacar uma arma – mas, na verdade, era um celular – ou porque o policial o “confundiu” com um suspeito fugindo – mas, na verdade, estava brincando de correr1. Você já ouviu essa expressão? “Preto parado é suspeito, e correndo é ladrão” –. Assim, não se discute que o PRÉ CONCEITO está gravado no DNA da branquitude, que, ao olhar uma pessoa negra, o mesmo se torna suspeito, bandido, ou não goza do benefício da dúvida que os brancos possuem de forma natural. O negro por sua cor, já vem condenado desde o nascimento. Essa mesma condenação aconteceu com o Beto, morto pela ignorância, soberba e preconceito de uma sociedade racista e estruturalmente preconceituosa.
O racismo também é tema dentro do Poder Judiciário. A juíza federal, Adriana Cruz, que é negra, relata um cotidiano curioso: “Às vezes percebo um certo espanto por parte de alguns advogados, quanto entram na sala de audiência e deparam comigo. Acho que a expectativa inconsciente é de encontrar uma juíza branca”2. Não podemos esquecer que no Congresso Nacional, só 17,8% dos parlamentares são negros. Câmara e Senado têm 106 das 594 cadeiras ocupadas por pretos e pardos; brancos são maioria nas duas Casas. Fica a pergunta. Como podemos ter Políticas Públicas Efetivas contra o Racismo Estrutural e aplicação das leis: 12.990, 12.288 e 12.711?
Sentimos exatamente isso nos contatos que viemos realizando com a rede Carrefour, a maior rede mundial de comércio de alimentos. Esta rede, numa atitude de soberba, e ainda como se fosse a dona do destino das pessoas, alicerçada num entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, realizou uma proposta leviana, acintosa e desrespeitosa para com a viúva de Beto, e como consequência, ofendendo a sociedade.
Apenas para se ter em mente, aos não operadores do direito, há um entendimento do Superior Tribunal de Justiça, de limitar as indenizações por morte em 500 salários-mínimos, embora não haja um limitador expresso quanto às ações de danos morais. Entretanto, esta limitação não é utilizada, normalmente, por Tribunais Estaduais, que entendem que os danos morais devem ser analisados caso a caso, tomando-se por base o poder econômico do ofensor e os danos causados ao ofendido. Quase sempre, quando a vítima é negra, colocam as indenizações lá embaixo. Isso é racismo estrutural e precisa ser combatido.
Como já referido, o Carrefour, no mês de março, anunciou a compra da rede BIG, sua concorrente, pela Bagatela de 7,5 BILHÕES DE REAIS3 e alcançou, no ano de 2019, o lucro líquido de R$ 1,1314 bilhão de euros4. Esta poderosa empresa, a maior rede de venda de alimentos do mundo, segue dando as cartas, colocando-se como dona e senhora da situação, aproveitando-se de uma saída jurídica para terminar o assunto do Beto, ofertando valor injusto à sua viúva, frente ao espantoso assassinado.
Apenas para ilustrar a atual situação de vida da Milena, desde a morte do companheiro, ela não teve mais coragem de entrar na sua própria casa. Apesar do contínuo tratamento psicológico, sofre, ainda, de stress pós-traumático, profunda depressão e demais traumas desencadeados por sentir a forte ausência do seu companheiro, morto pelos seguranças do Carrefour a socos e pontapés, sendo tudo gravado pelas câmeras do sistema de monitoramento, semelhante a uma luta de UFC (Ultimate Fighting Championship).
Desde aquela noite, ela não sai de casa desacompanhada. Dorme pouco. Desperta com pesadelos. Tem crises de choro, episódios depressivos e outros tantos sofrimentos diários que estão aniquilando o seu existir. Colocar o lixo, mesmo após cinco meses do ocorrido, só é uma tarefa possível se realizada com a companhia de alguém. Milena nos confidenciou que perdeu seu companheiro, seu amigo e seu esteio, perdeu aquele que a esperava com a janta pronta e a casa arrumada. Beto sempre a aguardava, mesmo ela chegando tarde do serviço como cuidadora.
No que toca ao pai de Beto, Sr. João Batista, a dor não é diferente. Falta-lhe o ar, assim como faltou o ar de Beto naquela noite.
Não conseguimos aceitar a inversão da ordem natural no ciclo da vida. Não estamos nunca prontos, não queremos enterrar um filho.
Quando é tirada da natureza cumprir o ciclo da vida, é-nos dolorosamente terrível e assombra. Beto era o filho de João Batista, sendo impossível medir a dimensão da dor desta perda, ainda mais da maneira que ocorreu.
A perda de um filho é uma ferida que jamais será cicatrizada, tão somente convertendo-se em saudades por alguns momentos, mas jamais será menor. Os pais ficam perdidos na sua dor, um vazio inconsolável, um lamento interminável.
Do valor dado ao “Manchinha” e ao Nego Beto
É de conhecimento público que, aqui no Brasil, o Grupo Carrefour é responsável por bizarrices que denotam falta de respeito com a vida alheia, seja ela de um cachorro ou de um ser humano.
Em 2018, o cachorro “Manchinha” foi morto. Era um cachorro sem dono e vira-lata, que foi assassinado por um outro funcionário de segurança terceirizada do Carrefour, que, covardemente, desferiu golpes no animalzinho que veio a óbito em razão da hemorragia interna oriunda dos ataques com as barras de ferro.
Em um outro estabelecimento do Carrefour, houve um funcionário que faleceu durante o expediente, mas o mesmo foi coberto por guarda-sóis, para que a loja não fosse fechada e a empresa não perdesse seu dia de vendas5.
Como se vidas fossem apenas brincadeiras para a Gigante Carrefour, no dia 19 de novembro de 2020 mais uma morte acontece: a de Beto, o negro que foi espancado até a morte pelos seguranças do hipermercado.
No caso do cachorro “Manchinha”, o Carrefour realizou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), comprometendo-se a pagar um milhão de reais como indenização à sociedade, distribuindo este valor à diversos órgãos ligados a causa animal.
À Sra. Milena Alves, viúva de Beto, foi oferecida a mesma quantia indenizatória paga pela morte do cachorro “Manchinha.” Não podemos deixar de comparar o Manchinha com o Nego Beto. Parece grosseiro fazer este comparativo, mas torna-se impossível não traçar um paralelo, pois parece que, para o Carrefour, o valor dado a vida de um cachorro e de um ser humano é exatamente o mesmo.
A título de conhecimento, a família de George Floyd, cidadão negro americano, morto por um policial, em 25/05/2020, na cidade Minneapolis, EUA, fechou um acordo para receber uma indenização de US$ 27 milhões de dólares, algo em torno de R$150 milhões de reais6. A comparação é inevitável. Em outras palavras, necessitamos alterar a jurisprudência, mas também precisamos mudar a cultura, a partir dessa negociação! Fica mais duas perguntas para a sociedade brasileira. Quanto vale a vida de um negro afro-brasileiro e um negro afro-americano? Quando vai ter fim a síndrome do cachorro Vira-lata?
É triste, mas é assim que o hipermercado trata a vida, é este o respeito que demonstra pelo outro, seja ele um cachorro ou um ser humano. O valor é tabelado, não importa se é “Manchinha” ou Beto, a indenização oferecida é a mesma. A vida de um homem está sendo igualada e nivelada pelos mesmos balizadores que a vida de um cachorro.
Todas as mortes merecem respeito, mas não se pode tratar de forma igualitária a morte entre humanos e animais, mesmo que ambas tenham acontecido por puro preconceito. Será que se o “Manchinha” fosse um Poodle enfeitado e o Beto um loiro de olhos azuis, ambos ainda não estariam vivos aqui entre nós?
Em qual curva nos perdemos?
Qual o valor de uma vida?
Senhores acionistas do Grupo Carrefour, quanto vale a vida de um negro afro-brasileiro?
Até quando vamos permitir que nossa sociedade despenque ladeira abaixo?
Porto Alegre, 31 de março de 2021.
CARLOS ALBERTO BARATA SILVA NETO
OAB/RS 76.596
Email: carlos.barata@bsbv.com.br
Cel: (51) 99918-1902
(Advogado Milena)
HAMILTON RIBEIRO
OAB/RS 35.975
Email: advhamilton@gmail.com
Cel (51 9998-9192)
(Advogado Milena)
RAFAEL PETER FERNANDES
OAB/RS 64.218
Cel (51 98195-9719)
(Advogado João Batista)"